Fonte http://www.listasliterarias.com/2019/09/10-consideracoes-sobre-heranca-de.html
10 Considerações sobre Herança de Sangue, de Ivan Sant’anna ou literalmente um faroeste brasileiro
O Blog Listas Literárias leu Herança de Sangue – Um Faroeste Brasileiro, de Ivan Sant’anna publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Embora com o objetivo de narrar a violenta formação histórica da cidade de Catalão, no sertão de Goiás, origens da família de Ivan Sant’anna, nesta obra o autor narra uma jornada assustadoramente real e que faz jus ao subtítulo “um faroeste brasileiro”, marcada por bala, sangue e morte, mas que a despeito de seu foco específico, não deixa de ser um retrato a violência persistente na própria formação do Brasil, pois que, Catalão talvez encontre espalhadas por este país tantas outras cidades erigidas da mesma forma, pela persistente imposição da primitiva “lei dos mais fortes”;
2 – E isso dá-se no livro, conforme diz o próprio autor por “um relato de lutas, crimes, de ódios, de paixões, de selvagerias e crueldades, com pouco espaço para o amor” em que a passagem do tempo é marcada pelos fogos [grandes tiroteios] e pelas tocaias que espreitam a cada esquina. E diferentemente a violência retratada com força por autores coo Guimarães Rosa e Mario Palmério, o sertão aqui é histórico, e todos seus assassinos e defuntos reais;
3 – Vale a distinção porque o próprio autor adentra a essa seara ao lembrar o quanto os acontecimentos na cidade, muitas vezes, aliás, são tão improváveis ou “espetaculosos” como os faroestes que tanto trataram desse tipo de violência no cinema. Como Sant’anna observa, tantos os acontecimentos em sua cidade-berço que poderiam competir em pé de igualdade com os principais mitos do oeste americano, algo que o leitor comprovará a cada novo capítulo;
4 – Em sua narração da saga real da cidade, o autor percorrerá os registros desde os primórdios da formação do vilarejo com Anhanguera II nos idos de 1700 à primeira metade do século XX, quando um linchamento envolvendo as principais famílias parece, para o autor, ter criado certa culpa coletiva, arrefecendo em certo grau a violência que tantas vezes fora, na perspectiva do autor, um dos entraves ao desenvolvimento da cidade;
5 – E de fato é duro conceber a natureza selvagem de um lugar que levava ao pé da letra a máxima popular “pra morrer, basta estar vivo”. Nessa longa saga banhada a muito sangue, a violência constituía-se como único código de ética, moral e honra, de modo que não se faltavam razões para atira ou esfaquear alguém, um lugar onde os respeito se montava sobre cada defunto feito;
6 – Vale dizer que a despeito de toda espetacularização da violência e das razões mais aparentes para seu exercício, como o uso para fins políticos, a reconstituição histórica feita por Sant’anna leva-nos a camadas mais fundas dessa questão, pois que em certo grau traz mentes e sociedade erguida sob o jugo da herança selvagem do caminhar da humanidade por sobre esta terra. Como se esta fosse o único código possível, e que por mais que nos coloquemos contra numa perspectiva contemporânea [claro, isso se você não for um dos tantos sociopatas que parecem ter saído de suas cavernas recentemente] a esse tipo de conduta, à sua época era a única lei conhecida por almas brutas, quase sempre marcadas pelo ódio, pela ambição e pela intolerância. Numa sociedade de selvageria, o selvagem, torna-se o único modelo possível;
7 – Com isso os leitores verão saltarem defuntos a cada capítulo. Mortes das mais diversas e pelas diferentes razões, muitas por uma banalidade tal, que nos torna piores que animais, já que estãos não matam por prazer, o que veremos, vez ou outra acontecia por Catalão, um lugar em que literalmente os fortes eram assassinos em nossa versão particular de oeste selvagem, na verdade, versões que não nos faltam, nossos sertões selvagens, nossos pampas selvagens;
8 – E aí está uma questão interessante de se falar, pois embora talvez pelo bairrismo natural a todos nós ou pelo objetivo claro de tratar da cidade, o autor parece tratar Catalão como uma excepcionalidade, um lugar apartado de uma nação tão igual em comportamento. Não é a intenção do livro, claro, mas poderá o leitor, especialmente aquele que conheça para além de nossas metrópoles urbanas, que a ordem vigente na formação histórica de Catalão assemelha-se a tantas outras cidades, de norte a sul desse país, são as sementes que germinam numa produção insistente de violência, condição que nos persegue junto e de mãos dadas com o atraso;
9 – Claro que tais reflexões surgem – ou surgirão – em muito conforme o compromisso de cada leitor. Narrada de forma atraente que de certo modo até mesmo confere certa feição épica a tal processo de formação, poderá o livro soar tão e meramente como um bang bang nacional. Como se fosse um pequeno recorte, tal como a ilha de Morus, um espaço geográfico apartado do todo. Aliás, essa sensação de distanciamento do todo amplia-se quando em alguns capítulos o autor enxerta notícias de fora, das coisas do mundo, enquanto na distante Catalão, a roda seguia seu próprio movimento, movida quase sempre pela energia da bala;
10 – Enfim, Herança de Sangue, é claro aquilo que se propõe, narrativa sobre uma cidade e de como a violência esta ligada intrinsecamente a sua formação histórica. Mas também uma obra que fala de valores e condutas que volta e meia somos lembrados, não foi apagada, pois apenas hibernas, para nuns e noutros períodos nos engolir com força, de modo que a intolerância, o ódio e mais do que isso, o desprezo pela vida alheia que são pilares e esteios da história de Catalão, o são também de uma nação ainda longe, mas muito longe de uma civilidade humanista.