Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/04/10-consideracoes-sobre-casa-dos-deuses.html
10 Considerações sobre A casa dos deuses – Os guardiães, de José Leonídio ou sobre crônicas do império
O Blog Listas Literárias leu A casa dos deuses – Os guardiães, de José Leonídio publicado pela editora Autografia; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Os guardiães – A casa dos deuses é o segundo volume da pentalogia de Leonídio em que o autor apresenta ao leitor as crônicas de um passado procurando dar visibilidade a todos os estratos sociais que compuseram e compõe este país. Neste segundo livro a narrativa desenvolve-se nos tempos do imperador, Dom Pedro II;
2 – De antemão, precisamos dizer que esta sequência soluciona um dos problemas que atrapalharam o primeiro volume, a revisão. Falamos disso em Portais da Liberdade e do quanto tais problemas prejudicaram o bom projeto que é esta pentalogia. Nesse livro, a obra nos exige pelo que importa, de modo que acaba fortalecendo as ambições do autor e fazendo justiça à relevância do projeto. Dito isto, podemos, portanto, nos dedicar apenas à interpretação e leitura do romance;
3 – De modo geral o romance permanece percorrendo o caminho de tentar-se construir-se enquanto épico nacional a partir das crônicas de um país antigo e em seu processo de formação, marcado por seus conflitos, mas acima de tudo, especialmente neste segundo volume, pelas inesperadas confluências que nem sempre estamos acostumados a observar, seja na literatura, seja nos livros de história. Isto porque o autor seguindo certo movimento que já percebemos nas artes, procura ambientar sua narrativa numa sociedade cujas complexidades não permitem a vivência em caixas apartadas e isoladas. Com isso ,estabelece inter-relações entre escravos, índios e brancos para além dos relacionamentos antagônicos e opressores já conhecidos e que eram de fato a regra, mas aqui, tentando trazer também os pontos de contato entre estas culturas;
4 – Exemplo disso que dentre os tantos vultos históricos que adentram a narrativa de Leonídio, está Maria Baderna, a bailarina italiana radicada no Brasil que rompeu muitas barreiras [que acabam sendo novamente impostas pelas reações conservadoras] ao trazer para o balé elementos das danças afro a partir de seu convívio e admiração pela cultura dos escravos. E neste exemplo, talvez, a proposta elementar do autor e de grande positividade, dando vida a personagens quem em vez de ficarem presos a polos pré-determinados, rompem as bolhas, procurando habitar, conhecer e compreender diferentes mundos e culturas;
5 – Por outro lado, pode soar quase ingênuo as crônicas reunidas aqui, porque podem causar a falsa impressão de uma liberdade efetiva naqueles tempos. Como se as intolerâncias, as xenofobias, o racismo fosse algo pontual e não todo o sistema. Isso porque no romance as culturas se unificam e formam alianças, que até houveram, mas que precisam, quem sabe, serem contextualizadas pelas pontualidades, para que não se fique certa impressão cosmopolita-positiva da capital do império daqueles tempos. Ainda assim, válida a solaridade com que se observa nossa história;
6 – Isso quer dizer que no romance ciganos, índios, brancos e o os escravos interagem de forma mais ampla, cedendo inclusive ao amor miscigenado, que na narrativa sai vitorioso todas as vezes que nasce. Esse seja talvez o principal detalhe a marcar uma possível ingenuidade a permear a narração e o risco da falsa impressão de serem aqueles, tempos mais amenos. O fato é que ainda hoje a interculturalidade e a intersocialidade narrada no romance podem ser um desafio enorme, como estamos vendo nestes tempos recentes;
7 – Vale reforçar que o protagonismo aqui se concentra na história, essa no sentido disciplinar do termo, e na própria cidade, capital imperial, pois que, embora tenhamos alguns núcleos de maior protagonismo [mesmo Ângelo, líder entre os negros da cidade, não concentra tal protagonismo] que acaba sendo fragmentado em diferentes personagens, como Clarinha, Pedro, entre outros. Assim, o narrador vai saltando entre diferentes focos e muitas vezes com muita ambiguidade, desnudando com certa malemolência os objetos de suas crônicas;
8 – Como argumento de que a cidade e a história protagonizam muito forte este volume, a narrativa se concentra em grande parte durante o período da epidemia de febre amarela durante o império, entre 1849 e 1850. Leonídio, pelo texto que apresenta, demonstra ter feito aprofundada pesquisa e é muito exitoso em descrever os comportamentos perante à desconhecida doença. Detalhe interessante nesta publicação do ano passado, o autor traz comportamentos sociais de dois séculos atrás e que praticamente não se alteraram, do negacionismo às crendices populares, que àquela época até se justificassem, pois eram tempos que o principal tratamento médico era com sanguessugas para controle dos humores;
9 – Aliás, há um elemento interessante neste romance a desvelar nossas posturas comportamentais e que dizem muito sobre esta nação: o poder das crendices, dos misticismos, das desconfianças e de certa insanidade coletiva nacional. É curioso não só observar as reações sociais quanto a crise sanitária, mas as reações a determinados progressos, como a luz à gás, por exemplo, sob o olhar desconfiado das carolas do romance. Há certo êxito do autor em nos mostrar nossos primitivismos que nos acompanham faz tempos;
10 – Enfim, Os guardiães – A Casa dos Deuses é um interessante e ambicioso projeto que entre a crônica de nossa história e o épico que procura colocar vozes até então silenciadas em destaque, apresenta-nos um olhar mais complexo às complexidades de nossa formação social, que embora permeada por certa ingenuidade e algum risco, oferece-nos uma proposta diversa e crível dos tempos que se foram.