Fonte http://www.listasliterarias.com/2019/12/10-consideracoes-sobre-peste-das.html
10 Considerações sobre A peste das batatas, de Paulo Sousa o batatinha quando nasce se esparrama pelo chão
O Blog Listas Literárias leu A peste das batatas, de Paulo Sousa publicado pela editora Pomelo; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Tomando a rota da sátira e do escracho, A Peste das Batatas procura ler a recente política nacional com um misto de humor e desilusão desencantada mergulhando com dois pés no insólito, retornando desse modo a uma tática comum por aqui em tempos estranhos e autoritários. Todavia, ao cabo, talvez fique certa impressão no leitor que o bizarrismo da ficção proposta fique uma pouco aquém do bizarrismo real que impregnou a polarizada política brasileira. Para tanto, temos de observar de perto essa interessante publicação;
2 – No romance somos levados ao Vale das Batatas e à trama envolvendo o agricultor Omar Salgado e um cientista, Dr. Jameson que terão de lidar com o misterioso acontecimento, a transformação de todas as batatas em sal. Tal acontecimento serve para demonstrar a forma dos políticos agirem diante o inusitado problema, isso tudo envoltos sob pano de fundo de mudanças políticas traumáticas e escândalos de corrupção;
3 – E aqui temos já um elemento a ser discutido. O livro é assumidamente uma sátira política que parte de simulacros reconhecíveis de notórias personalidades do poder nacional. Um deles marcado pelos dir-se-ias e eleger-me-eis que não deixará dúvida sobre quem se trata. Mas a questão que se pretende tratar é da obra enquanto reflexo da baixa popularidade dos políticos no Brasil, pois que o livro é uma metralhadora giratória contra a classe política. É o segundo lançamento recente que lemos aqui no blog que segue uma lógica semelhante cuja desesperança maior está em tratar o universo político de forma generalizada, e que também ao fecho procura por soluções radicais em sua desforra contra aqueles que já parece ter se tornado consenso serem os “vilões” desta nação;
4 – Há nesse aspecto uma discussão a se levantar. Embora a sátira seja o campo do exagero, a visão construída da classe política pela generalização emperra qualquer caminho para a solução dos problemas. Tanto nestes recentes romances [conhecemos outros que estão indo nesse caminho] quanto nos brados indignados das redes sociais é com certo alarme que observamos a radicalização que vem antagonizar com a política. Isso neste romance se revela na voz totalitária de seus personagens que diante das complexidades da sociedade seguem o caminho mais fácil “é tudo culpa dos políticos”. Se o financiamento do banco não sai, se um vírus se espalha, a burocracia, a infelicidade, tudo acaba caindo na mesma conta, que em última instância fragiliza o aspecto democrático. Não se trata aqui de defesa da classe política, pelo contrário, contudo, de certa forma refletindo os fatores externos, internamente há uma disposição totalitária no que se refere a visão de seus personagens a respeito dos políticos. Todos falam coletivamente a mesma coisa;
5 – Isso contudo enseja num grave problema. Nós, membros da sociedade não nos incluímos enquanto parte do problema. Ao se estabelecer dois polos, os políticos de um lado e o povo do outro se ignora que na prática a coisa é um pouco mais complicada. Ao se propor ou insinuar ainda que extirpar o polo tirânico não apenas radicaliza a questão, mas também peca pela ingenuidade. A história registra quase que ciclos de solução mesma, corta-se a cabeça de políticos, faz-se revoluções e os resultados pelo jeito não melhoraram muito as coisas. Não significa aqui resignação, mas talvez propor de que se não olharmos adiante, se não pensarmos em novas opções e novos caminhos, conscientes inclusive que somos parte do problema, não se poderá de fato revolucionar. É nesse sentido que destilar apenas contra os políticos e imaginar que se livrarmos deles, nos livraremos dos problemas, em vez de avançar, pode apenas nos levar a novas decepções. Com isso dissemos que o romance parte de um diagnóstico e de uma radical solução que no fundo repete tentativas frustradas ao longo da história humana;
6 – Por outro lado, se nos permitimos discutir os conceitos e os caminhos deste romance curioso, vale dizer que enquanto alerta da gravidade da situação brasileira, a obra é bastante eficaz. Em suma, o livro reflete em sua radicalização o grito de uma nação prestes a explodir. Como já dissemos aqui, é uma obra que não está só. Aliás, vale dizer que a radicalização se encontrará justamente em romances outsiders, para usar termo tão em voga. Se pegarmos recentes romances nacionais oriundos do círculo literário mainstream veremos a procura por vozes de equilíbrio, ainda que perdidas. Já em romance como este A Peste das Batatas e, por exemplo, Matando Políticos, encontraremos a indignação plena, marcada por certa raiva da classe política, o que lhes abre caminho para opções mais radicais. Mas enfim, gostaria nesta questão de dizer da legitimidade de tal desgosto, bem como do quanto os próprios políticos têm se esforçado para “construir” esta imagem junto do povo, entretanto, o todo de seu significado é um tanto assustador, pois que as tendências a que tais visões apontam podem ser um tanto perigosa;
7 – Por se tratar de obra política, logicamente discutiríamos esse elemento com maior detalhe. Isso por si só mostra o valor da publicação, que para além da sátira política, convém destacar outras virtudes, como, por exemplo, a verossimilhança cuidadosa do autor ao retratar uma ambientação habitada por agricultores familiares. Por ser da área sem que isso nem sempre é fácil, mas o autor conseguir construir com certa fidedignidade a personalidade agrícola de Omar Salgado e o seu círculo. Mesmo com a liberdade do insólito e da sátira, nesse aspecto se procurou pela verossimilhança e isso foi um aspecto positivo;
8 – Do mesmo modo a linguagem e a técnica literária demonstram a habilidade do autor para com o gênero. Aliás, note-se as peculiaridades do narrador, aparentemente uma voz em terceira pessoa que se descobrirá no correr da narrativa ser uma voz em primeira pessoa, um narrador-personagem-protagonista que se apresenta e que se permite a reconstruir o que não testemunhou. Além disso, a tessitura da trama, os intertextos, as marcas de oralidade e as brincadeiras líricas no interior do romance conferem qualidade à produção;
9 – Assim, no geral, é uma obra que te atrai desde o primeiro contato [diga-se também de seu belo projeto gráfico] e nos convida à leitura. Há um princípio bastante potente que nos faz querer ler imediatamente e algum marasmo no entremeio da inusitada trama. No fim retoma-se o impacto quando os personagens avançam em sua radicalizações. Aliás, sobre a radicalização é possível que precisemos de um espaço maior de discussão para podermos dar conta de todas as complexidades e ângulos da questão, pois há uma série de elementos a se discutir e refletir sobre o desfecho inesperado e trágico da sátira, aliás, que embora nos tire alguns risos, deixa-nos mais com os incômodos que a desilusão nos provoca;
10 – Enfim, A peste das batatas é um bom e curioso romance sobre a bizarrice nacional que se tornou nossa política. Com líderes draconianos e protagonistas entre o herói e o anti-herói a trama insólita nos entrega uma sátira com menos humor e mais melancolia. Melancolia de uma nação que não reconhece mais sua política, que se mostra oprimida e disposta aos caminhos desesperados. A questão que nos resta é saber se caminhos desesperados podem ou não ajudar em alguma coisa.