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10 Considerações sobre Amanhã vai ser maior, de Rosana Pinheiro-Machado, ou sobre misteriosas jornadas

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/01/10-consideracoes-sobre-amanha-vai-ser.html

O Blog Listas Literárias leu Amanhã vai ser maior – o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual, de Rosana Pinheiro-Machado publicado pela editora Planeta. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Se há algum consenso no Brasil nestes tempos polarizados talvez seja o de que 2013 foi um ano divisor. Contudo, qualquer concordância para por aí, pois que os reflexos, as motivações, a própria história das Jornadas de Junho de 2013 não apenas dividem analistas e pesquisadores como se mantêm ainda um tanto cabulosos aqueles dias em que o país foi tomado de assalto por gente indo às ruas em uma época que a princípio transparecia não trazer razões para tanta insatisfação. Já são muitos os olhares para aquele momento e Pinheiro-Machado procura situar-se distintamente, mesmo entre os progressistas, campo que tem produzido certas críticas às jornadas. Com ensaios de linguagem acessível, quando não, compartilhados originalmente nas redes sociais, neste livro é a partir das Jornadas de Junho de 2013 que a autora parte para suas análises deste tumultuado Brasil de lá até a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Nesse sentido parece haver uma espécie de auto-crítica dentro do campo progressista, ainda que talvez não partilhada pela grande parte da esquerda cujo um dos alertas que faz a pesquisadora é justamente sobre a soberba esquerdiana e, na visão dela, a dificuldade de lidar com esse avanço da extrema-direita;
2 – Cientista social e antropóloga, Rosana Pinheiro-Machado viu viralizar nas redes sociais seus textos, por exemplo, sobre os rolezinhos. Procurando uma perspectiva de tentar compreender o outro sem julgamentos pré-concebidos [o que na esquerda ocorre um bocado] a autora parte de sua pesquisa junto com Lucy Mury Scalco de 2009 a 2018 investigando “a inclusão pelo consumo e a subjetividade política em uma das maiores periferias da cidade de Porto Alegre”.  Tal aproximação facilitou, por exemplo, a capacidade de percepção da possibilidade de eleitores petistas em votar em Bolsonaro, o que à época levantou muita indignação na esquerda-soberba. Não sei se por arrogância ou por incapacidade de crer nessa possibilidade, no campo à esquerda, antes das eleições, era sempre difícil dizer a alguém da esquerda que eleitores de Lula também votariam em Bolsonaro. Lá por 2016 e 17 quando levantava essa possibilidade entre amigos da Universidade era visto como louco, tal comportamento negacionista serve para que Pinheiro-Machado mostre o afastamento da esquerda das bases, pois esse foi um dos elementos fundamentais para que essa esquerda sequer percebesse que Bolsonaro poderia tirar-lhe eleitores; apenas quem mantivesse essa relação próxima com o povo não teria dificuldade em perceber. Parte destas questões a autora discute no ensaio “Mano Brown Avisou” que encerra o Ato II em que agrupa ensaios sobre o “Recuo da Esquerda”. Dividido por atos, os textos se agrupam em ATO I que “discute o avanço da direita desde 2014”, o Ato II “é uma análise crítica do recuo da esquerda enquanto o Ato III traz “uma análise crítica do bolsonarismo propriamente dito”;
3 –  Embora percorra essa linha diacrônica do tempo entre 2013 e a ascensão do bolsonarismo a autora carrega em todos os seus textos a concepção de sua tese quanto às Jornadas de Junho de 2013. Talvez aí residam as questões mais importantes para debate e discussão. Tanto quanto às jornadas quanto à Greve dos Caminhoneiros em 2018, a autora estabelece certa visão utópico-revolucionária dos dois eventos, inclusive procurando afastá-los do bolsonarismo, concebendo-os enquanto revolta e indignação popular. Parece acertar em muitos pontos, entretanto, especialmente nestas duas discussões, há elementos e variáveis que a autora parece não considerar ao rechaçar muitas das críticas a ambos eventos que têm sido construídas no campo à esquerda. Se é bem verdade que possa ser exagero ou errôneo dizer que as Jornadas levaram ao bolsonarismo, também o é se deixarmos de analisar tais eventos com ceticismo. As revoltas ambíguas como define a autora explodem num contexto global e num cenário para lá de suspeições, cujas coincidências talvez não possam ser ignoradas, inclusive trazendo para as variáveis o impacto ainda de todo não desnudo da Cambridge Analytica pelo globo manipulando diferentes conflitos e disputas sociais e políticas;
4 – Ao conceber uma visão utopista das jornadas Pinheiro-Machado acaba nublando justamente os aspectos negativos do que adentra às ambiguidades a que se refere. Por exemplo, em nenhum momento se cogita a possibilidade de interferência estrangeira ou de manipulação massiva de uma multidão que literalmente devorou pequenos e rotineiros movimentos de luta, como o Passe Livre. Todavia, a essa altura talvez seja interessante compartilhar rapidamente quem escreve e opina, com todos os defeitos que uma visão mais classista possa carregar. O Listas Literárias foi criado em 2009 como hobby aos meus prazeres com leitura, literatura e escrita, o que nas redes sociais resultou numa grande capilaridade de relações, o que durante as jornadas pude acompanhar muitos participantes. Mas essa era uma parte, já que minha atuação na agricultura familiar e no sindicalismo rural desde 2001 levou-me a muitas manifestações e atividades, inclusive a um pouco lembrado Encontro Unitário dos Povos do Campo em 2012 composto por diferentes atuantes à esquerda, da Contag ao MST, em que mesmo numa base pró-governo ouviu-se “Fora Dilma”, e com uma marcha que ameaçou invadir o Planalto. Digo isso justamente para contrapor um lema carregado de ambiguidades e sentidos que emanou daquelas jornadas de 2013, “o gigante acordou”. Quem despertou? seria a pergunta, pois que no Brasil a militância nunca cessou, já que quem participa não apenas do sindicalismo, mas de tantos outros ativismos sociais, bem sabe que as lutas sempre foram permanentes. No meu segmento, por exemplo, Grito da Terra e Marcha das Margaridas mostram que os oprimidos sempre estiveram a campo e como bem sabe todo e qualquer militante, a cada protesto sendo chamado de vagabundo. Ao longo das últimas duas décadas o que não faltaram foram movimentos sociais, claro, com a ascensão do PT ao poder houveram mudanças na forma de diálogo; entretanto você vai encontrar mobilizações rotineiras, como a de estudantes pedindo o passe livre. Porém, parece-me que as jornadas foram diferentes, ao confessarem “o gigante acordou” uma grande massa que por algum tempo ou por seus motivos permanecia alheia às realidades de um Brasil desigual foram instigadas às ruas. A web-left e a alt-right todas juntas  numa só marcha. Só que a web-left cheia de jovens idealistas, mas distantes das práticas de mobilização, foi enchendo e enchendo um corpo de mente e pensamentos tenebrosos. Além disso, ao tentar afastar o caráter de direita das jornadas, não se leva em consideração, por exemplo, os tantos ideais e grupos de direita que tomaram as jornadas por completo, pois não pode se negar que algo se embriona e se aproveita do atirar de rebeldes às ruas. [Um dado curioso é o do terrorista Eduardo Fausi, integralista que à época entre os Black Blocks foi defendido por supostos militantes de esquerda]. O que se pretende dizer aqui, que não se excluindo a visão mais utopista da autora a respeito de 2013, cada vez mais surgem elementos que fazem a possível ambiguidade pender à direita. Desconfio, e aí entregando-me aos riscos da aposta, de que uma web-left com ideais progressistas, mas distante do ativismo real foi manipulada  a engrossar as passeatas que iniciaram talvez com pequenos grupos de esquerda, mas já no auge das jornadas com parte da massa instada às ruas e uma sombra manipulando os ventos, toda a pauta e construção estavam à direita, rechaçando a democracia, os partidos, semeando o ódio visceral ao PT [Tal sombra nos é um enigma ainda, mas um de seus constituintes certamente é a mídia tradicional, as oligarquias que se regozijaram com a possibilidade de quebrar “o encanto petista”];
5 – Se o utopismo a respeito das jornadas pode ser compreendido, já com o que a autora chama de “a revolta das caçambas” é um pouco mais delicado. Considero a Greve dos Caminhoneiros a mais grave e recente tentativa de imposição de projeto autoritário desde a redemocratização. Sob a proteção de uma falsa horizontalidade o país parou e cada um de nós construiu sua própria experiência com o evento. Em meio a uma euforia popular com apoio aos caminhoneiros, os olhares mais céticos, caso deste que vos escreve, sempre foram um risco. Numa experiência pessoal, por exemplo, ao criticar o movimento na internet, meu nome passou a ser compartilhado com ameaças veladas por grupos, além de tentativas de ataques via Facebook. Não era uma greve, mas sim um movimento radical que instigou todas as raivas, e muito disso reverberou em 2018. Isso não aparece na análise da autora. Além disso, o cenário perfeito para ser do contra unificou precarizados insatisfeitos com o golpe e mal intencionados extrema-direitistas que fizeram da Greve uma gigantesca vitrine contra a democracia. Um democrata jamais teria como defender tal movimento. Ademais, uma análise das muitas faixas em quase todos os piquetes resumiriam a exegese bolsonarista: intervenção militar e anti-intelectualismo. Lembro de a televisão passar por uma faixa que dizia “quero ver como os estudiosos vão explicar isso”. A Greve dos Caminhoneiros escondeu mais do que se pode supor, e sob as águas esconde-se talvez um grande iceberg que precisamos trazer à tona;
6 –  Mas para contra-argumentar a visão positivista da greve de Pinheiro-Machado, antes de mais nada, creio, mais uma vez, é preciso reforçar a ideia de que cada brasileiro vivenciou a greve à sua maneira, mas ao fim todos tiveram impactos em suas vidas do evento. Dito isso, parto de que para a construção das perspectivas positivas tiradas da ambiguidade dos movimentos defendida pela autora só mesmo desconsiderando alguns elementos importantes do complexo momento histórico. Por exemplo, ignorar o patrocínio empresarial ou dos ruralistas ao movimento. Em minha cidade, Pantano Grande, a alimentação no piquete [na BR 290] com desforra de churrasco e bebida era financiada por pequenas transportadoras, por uma grande mineradora e por ruralistas da Farsul-CNA, inclusive com apoio institucional. Esse foi um cenário bastante comum no Rio Grande do Sul. Desconsiderar isso impede de observar que estes movimentos por essência conservadores e militaristas tinham muito interesse numa pauta de intervenção e pouco se importariam se Temer caísse, pelo contrário. Seria-lhes vantajoso. Outra questão é que embora com muitos autônomos e precarizados que realmente sofriam e continuam sofrendo com o cenário econômico participando do movimento, isso não se exclui a possibilidade de manipulação das raivas. Estamos sendo abastecidos com muita raiva e vejo mais a greve como um exemplo das táticas dos demagogos cujas premissas são apresentadas de forma interessante no conto “Depois de uma guerra perdida”, de Georg Kayser. Não se pode desconsiderar a possibilidade, mais uma vez, de manipulação do desencanto de muitos destras trabalhadores da estrada. Se conversar com alguns deles hoje, é possível entre eles mesmos, novos olhares sobre o movimento. Ademais, a autora partilha um depoimento coletado em que o caminhoneiro  diz que “afirmaram que havia lideranças, mas que ninguém sabia quem era para não serem perseguidos”. Esse seria um relato recorrente entre muitos deles e talvez nesse aspecto o ponto mais emblemático e perigoso: a sombra que persiste;
7 – Ao se olhar positivamente o evento corremos o risco de deixar passar nuances. Pinheiro-Machado reproduz este depoimento cujo trecho talvez se perca no mais amplo. Mas parece-me provocador. Tanto as jornadas quanto a greve e alguns outros movimentos de caráter mais visível à direita temos a promessa do devir e a aparente falta de liderança mediante a falsa horizontalidade, que desconfio, tem servido mais a esconder os titereiros do que realmente conscientizar os títeres. A greve dos caminhoneiros os tornou momentaneamente em revolucionários, mas revolucionários em grande parte patrocinados pela indústria, pela direita intervencionista ou por entidades conservadoras como ACIs, Rotary Club’s, etc… No livro não se fala, por exemplo, de Associações Comerciais intimando que associados aderissem à greve, tampouco observa-se que em muitos casos se via mesmo cárcere privado com caminhoneiro impedido de voltar para a casa. Imagine se o MST fizesse uma ação nesse nível de radicalismo. Um caminhoneiro preso em um piquete relatou-me armas. No auge da greve a radicalização aumentou e participantes, não só caminhoneiros mais, iam às ruas das cidades, pequenas ou médias, literalmente confiscar possíveis caminhões que estivessem trabalhando. Uma empresa de médio a grande porte em Santa Cruz do Sul teve seu pátio invadido por pretensos caminhoneiros. Nos dias finais houve consideráveis relatos de violência e quase a migração de autoridade e poder. Em muitos piquetes participantes agiam com poderes policiais. As coisas tomavam caminhos perigosos a cada fake news vinda pelo whatsapp. Aqui outro ponto de inflexão à positiva análise de Pinheiro-Machado sobre a greve;
8 – Num país sério o escândalo dos disparos de mensagem nas eleições de 2018 divulgado pela Folha seria mesmo um escândalo. Mas o que pretendo dizer com isso? Que se a reportagem não chocou como deveria chocar, pelo menos aos interessados ela revelou que custa caro e demanda uma grande estrutura essa disseminação massiva de mensagens. Não sei se há estudos sobre mensagens durante a greve, mas é sabido que toda ela foi organizada e tutelada pelo whatsapp. Com tudo o que vem sendo revelado seria no mínimo precaução olhar com a mesma atenção para a movimentação nas redes comparativamente a greve e as eleições. Em ambos é possível sentir pairar certa sombra, um sistema orquestrado e com recursos atiçando uma base oprimida e raivosa e que tinha razões para protestar. No entanto, quem ganhou? quem perdeu? Uma nota curiosa é que muitos sindicatos ruralistas da CNA que participaram ativamente da greve ainda hoje discutem judicialmente a tabela do frete. Tais perspectivas têm de ser levadas em conta numa análise mais ampla. A greve dos caminhoneiros longe de uma revolução, mais pareceu a tentativa dissimulada e escamoteada de tentar impor um projeto autoritário no país. Cidades foram sitiadas, a minha com 10 mil habitantes sofreu parcialmente com desabastecimento. Alguns produtos mais sensíveis, por exemplo, leite para famílias com crianças pequenas. Relatos de problemas na área da saúde, autoritarismos com que discordasse, etc… Os anúncios do governo não davam em nada porque já não interessava mais a pauta, no meio do movimento em vez de uma política para caminhoneiros o projeto era derrubar o governo, o conde, insuflamento que surfou na onda bolsonarista e na raiva que o golpe ainda proporcionava em muitos. Aí talvez a grande adesão à greve, tanto de caminhoneiros, quanto da população;
9 – Mas se podemos questionar um pouco mais a visão da autora nestes dois problemas específicos, no restante a visão aguçada traz observações pertinentes sobre a ascensão da extrema-direita no Brasil, em especial seu diagnóstico acerca do afastamento do campo progressista das bases. A chegada ao poder ao passo que construiu políticas públicas também afastou militantes. O vácuo de que fala a autora, para quem está no meio do povo e é o povo, é bastante nítido. Ela também é bastante assertiva quando aponta os preconceitos nacionais e seus papéis nesse período, como quando analisa os rolezinhos. Além disso, embora com nossas observações, a autora procura aprender o que em grande parte a esquerda ainda talvez não tenha despertado. Sua análise um tanto mais crítica e com menos julgamentos acerca do outro fortalece sua argumentação;
10 – Enfim, Amanhã vai ser maior é um olhar entre os muitos olhares que estão sendo produzidos sobre estes tempos recentes, tempos que a despeito de qualquer concordância ou oposição à ideias mostram que um Brasil diferente está em formação, para pior ou para melhor. Máscaras caíram e pequenos faróis de resistência pipocam aqui e ali enfatizando a mais velha máxima, a luta continua, companheiros, companheiras, companherxs…

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