Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/04/10-consideracoes-sobre-apatridas-de.html
10 Considerações sobre Apátridas, de Alejandro Chacoff ou sobre Deus e o Diabo na terra do capital
O Blog Listas Literárias leu Apátridas, de Alejandro Chacoff publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo dobre o livro, confira:
1 – Há certa esterilidade nas almas e nas paisagens de Apátridas, um vazio que paradoxalmente parece preencher seu narrador-protagonista com angústias e incompreensões de uma alma que parece tentar ler um mundo sem grandes lógicas, um mundo em que o dinheiro o controla de acordo com o recheio dos envelopes de seu avô. É com isso também um romance em busca de identidade, uma busca de alguém que parece não encontrar seu lugar no mundo;
2 – Tal busca, tal tentativa de encontro consigo próprio e com a vida, ficará bem claro quando seu narrador confessa que “era como se eu mesmo escolhesse dar um tom trágico a uma vida demasiado leve” que é, na verdade, também a confissão daquele que protegido pela bolha burguesa e a despeito de seu olhar crítico para a mesma, acaba percebendo não ser apenas tocado por essa burguesia, mas acima de tudo, protegido por tais estruturas, pertencer. Com isso, há o que se parece, uma busca pela lucidez ao enfrentamento de tal crise identitária daquele que nega suas raízes escondendo-as sobre outras tantas, mas que, diversas, o constituem também. É o caso do narrador, o “neto americano do José do 8º Registro”, filho de pai chileno, peregrino do mundo, mas que na infância precisa se proteger em seu ninho, no caso uma tradicional e cartorial família mato-grossense, o que nos abre o olhar então a uma análise social de certa acidez, mas não sem certa melancolia sempre presente na voz do narrador;
3 – Nisso vale dizer que o romance se dá em tons de memória, escrito num futuro já distante da infância que relembra, ou que tenta relembrar e dar significados. O que nos faz levar em consideração que quando escreve, já adulto, morando em Londres onde sua vida “lá tivesse certo aspecto de irreal” permanecem suas incompreensões identitárias, certa fuga de uma verdade que lhe parece incômoda. É preciso considerar esse narrador em fuga, em negação, que já ao fim da narrativa volta ao Mato Grosso, sempre em meio a esse conflito da rejeição pátria, uma das questões da narrativa. Mas em suma, são memórias, como as memórias nos são, elementos de leitura de nosso próprio universo, ainda que não consigamos ler tal universo em plenitude;
4 – Dito isto, as memórias então se concentrarão em grande parte na diáspora pessoal deste narrador cuja identidade pátria, como vimos, ele ou parece não discernir plenamente, ou então, tenta mascará-la. Suas reminiscências tratam da sua vida na infância quando a partir da separação dos pais, precisa voltar ao Brasil, ao Mato Grosso, que no livro vem sendo mostrado a partir de certo desenvolvimento do estado, daquele passado mítico e de valores conservadores ao estado que a mãe, no futuro do presente, desejosa no retorno do filho, tenta mostrar-lhe como aquele lugar estéril está mais cosmopolita. Mas retornando à infância do narrador, lá se encontram aquilo que ele deseja fazer saltar-nos aos olhos, a burguesia estrutural [uso esta expressão de modo semelhante a expressão que vem sendo muito usada, racismo estrutural, que embora a veja ainda um tanto problemática, tem sido uma expressão eficiente] que diz muito de uma nação. Uma burguesia um tanto parasita, sábia em se infiltrar nas teias do Estado e dele tirar todos os melhores proveitos, uma burguesia à direita, especialmente no caso do livro, mas também a esquerda, como o romance pincela. Nisso nada mais representante dessa burguesia estrutural que os impérios cartoriais, dos quais, um está sob o comando da família do narrador, sob o comando de seu avô;
5 – Isso nos abre a uma série de possíveis interpretações e compreensões, mas em especial dá-nos as teias que se interligam nos jogos de poder que se criam abaixo do grande poder. Tais teias produzem fortunas e se mantêm via de regra por autoritarismos que nem sempre se revelam drásticos, como na forma que a família do narrador lida com as coisas, mas não menos autoritários. Pelo olhar infantil que de algum modo se conserva no narrador, se parece naturalizar os pactos aí existentes, e com isso ganha em voz crítica, pois que ao leitor, os perigos e indecências parecem ficar mais coloridos e ressaltados pela melancolia da narrativa;
6 – É como se seu narrador não encontrasse uma solução ao problema, ao menos nada além do que a fuga daquilo que deseja rechaçar. Há, parece, uma tentativa de não participar daquele jogo ao mesmo tempo que uma consciência um tanto sádica de que é também fruto daquele sistema. São os envelopes de Seu José uma espécie de metáfora da burguesia-estrutural-pai-nação a distribuir entre os seus os diferentes envelopes, uns como migalhas, outros como mantenedores do sistema, um sistema em que se dividem entre uma direita cínica que não tem vergonha de participar da dança e de uma esquerda que a despeito de suas crises de consciência, não deixa de pegar seus envelopes, participando do jogo ou fingindo dele fugir;
7 – E aqui talvez também entremos em algo que Antonio Candido sempre debateu em nossa literatura. A problemática da identidade. A questão da identidade nacional, embora talvez não pareça, é um dos pontos centrais da narrativa. Nossa literatura é marcada pelo jogo entre negação e a procura de uma identidade nacional, e embora trazida para uma camada a dentro da matriosca, é o que parece fazer Chacoff em sua narrativa. Como noutros momentos de nossa literatura há a tentativa de se cometer certo parricídio. O narrador tenta matar sua real origem, algo que ele procura esconder em sua aparente falta de identidade, em sua suposta condição de apátrida. Talvez o seja, mas o seja justamente na tentativa de matar a origem que tenta negar, o provincianismo e patriarcalismo a que tenta se opor. Nisso, talvez, sua aproximação com o pai biológico que o abandona. Filho e pai quem sabe compartilhem da opinião que são todos uns caipirões, a família do avô, o Mato Grosso, o Brasil… Apátridas é essencialmente uma narrativa que põe em debate novamente a questão nacional;
8 – Além disso, claro, temos a questão do dinheiro. Questão para além do capitalismo. Não se discute aqui um sistema em si, mas a abordagem acerca das relações entre dinheiro força e poder. Para tanto, o romance desfila uma miríade de personagens que orbitam o poder da moeda, este, um poder solar, como veremos ser o caso do vô José, um sol em que planetas, satélites e outros corpos orbitam. No caso de José seus raios são envelopes, cada qual com seu valor a seu cada quem. Curiosamente uma socialização às avessas do Estado, nesse caso especifico. O dinheiro, portanto, é ponto vital do romance; é contradição da canção que diz “dinheiro na mão é vendaval”, pois para Chacoff, dinheiro na mão é poder, é poder estruturado a abastecer, manter e proteger nossas bolhas do patriarcado burguês de um país que parece acostumado com tais condutas. Mas há no fim certa esperança, uma esperança na incapacidade sucessória desta burguesia em manter os velhos ritos do patriarca;
9 – Por conseguinte, antes de encerrar os comentários sobre esta leitura, gostaria ainda de abordar os apagamentos. Na literatura apagamentos são relevantes, e é no mínimo curioso como o narrador em suas memórias em muitos momentos parece focalizar familiares, o pai, tios, especialmente o avô, a mãe, acada de modo geral mantendo como um espectro, um fantasma, a irmã, da qual quase nada saberemos. Não se se é um mistério, mas é no minimo curioso, o que só reforça a fragilidade dos laços parentais que o narrador irá manter ao longo do romance, reforçando em parte sua espécie de fuga e de negação;
10 – Enfim, Apátridas é leitura sinuosa, com trilhas e curvas que a fazem lenta; densa. Sob o olhar explícito do narrador, as redes, as tessituras e os contratos sociais saltam dos implícitos, daquilo que parece o narrador não compreender. É romance-presente que ao recuar às ultimas décadas a um canto conservador do país, fala também de nação, fala também de identidade, de dinheiro e poder. Um livro que ao negar-se nacional, escancara a nação. Penetra nossa velha querela intelectual no debate das identidades. É também um livro duro e que desnuda sem grandes alardes a burguesia estrutural num país cartorial em que quem tenha envelopes como os de José ditam nossos andares. Leitura interessante que reforça em parte o que alguns de nós já sabe ou conhece, mas que assim como o narrador-protagonista, ainda parece não encontrar solução ao que critica, aí o auto-exílio. Auto-exílio, que paradoxalmente é também uma possibilidade burguesa.