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10 Considerações sobre As sobras de ontem, de Marcelo Vicintin ou de cócoras ao american way of life

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/06/10-consideracoes-sobre-as-sobras-de.html

O blog Listas Literárias leu o e-book de As sobras de ontem, de Marcelo Vicintin publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 – Entre o azedo, o ácido e o amargo, Marcelo Vicintin propõe um olhar resignado e depressivo de uma nação estruturalmente selvagem, marcada por privilégios e decadências numa volúpia constante de um canibalismo social, aqui, não ambientado em nossa pobreza, mas sim um naturalismo levado às elites e a uma burguesia nacional pinceladas pela crítica de um agridoce que eleva a percepção da decepção e fracasso que envolve seus narradores;

2 – Aliás, vale dizer que este romance parece enveredar-se para algo talvez cada vez mais presente em nossa literatura e que em síntese pode encontrar um pedaço de sua tradução na palavra “estrutural”. Talvez seja esse momento que vivemos, de tudo posto pútridamente aos nossos olhos e olfatos, mas cresce obras que parecem querer olhar para as estruturas de uma nação em declínio. No Marrom e Amarelo, de Paulo Scott temos em discussão, por exemplo, o racismo estrutural. Já Apátridas, de Alejandro Chacoff e este As sobras de ontem parecem querer adentrar os privilégios estruturais de um país marcado pelo poder do dinheiro, dos atalhos e, claro, dos privilégios;
3 – Nesse aspecto, temos então uma abordagem inteligente e distinta. Se ao mesmo tempo que mergulha nas estruturas privilegiadas de uma elite econômica, o autor, contudo, trata da peculiaridade do Brasil no que se refere à alternância nas pirâmides do topo social, lugar seleto e historicamente marcado quedas e ascensões. O argumento se torna mais válido quando o autor compara a permanência no topo de famílias nobres americanas e a constante mudança dos sobrenomes no cume da pirâmide social brasileira. É sobre quedas e ascensões “no paraíso” verde-amarelo que Vicintin apresenta uma crônica tragi-nada-cômica de um desencanto que corre na direção da desolação;

4 – Para dar conta desse jogo de alternância, ainda que não de forma binária, o autor nos apresenta dois narradores extremamente verossímeis. Um aristocrata na acepção da palavra, quedado pela ambição e pelo risco assumido ao não aceitar o “tédio” do nicho-afortunado em que vivia e adentrar ao jogo do poder e uma jovem burguesa típica das esferas medianas deste país, tão longe mas tão perto de um cume que vislumbra e paga o preço da brutalidade e do grotesco de uma nova elite econômica em ascensão;

5 – Aliás, Egydio é um belo retrato de duas visões distintas de mundo que não estão aparentes, mas podem ser trazidas à tona pelo contexto. Aristocrata caído e em prisão domiciliar após envolver-se com o poder, há nele a nostalgia de um mundo que não mais existe. Um mundo cavalheiresco e intelectual de uma elite cada vez mais, extinta. O mundo de Egydio pe o da cordialidade, dos códigos, dos costumes, dos ritos. Em sua, a elite econômica e a cultura fadada a desaparecer a que Egydio pertence parece representar uma formação Europeia e o modus operandi de sua burguesia;

6 – Entretanto, para o desencanto do narrador-protagonista, preso em sua mansão, ele vê ruir todo um modo de vida. A elegância está em seus dias finais. Tanto que sua apoteose de despedida revisita a nobreza da ilusão de um Conde d’Eu vendo o império ruir a sua frente. No caso de Egydio, entretanto, parece-me, não está a República às portas de um Império corrido porta à fora, mas sim a flatulência e a algaravia de uma nova elite já distante da Europa, mas sim fundada nos piores exemplos de uma cultura, que em diferentes esferas, parece aculturar todo um país: a cultura brucutu dos americanos, incultos, endinheirados, usando de todas as rasteiras que o capitalismo permite. Essa não é uma coisa dada, caberá ao leitor encontrar esse enfrentamento em duas visões de mundo tão distintas, o europeísmo já sem lugar no cume social cada dia mais dominado por um americanismo representado em parte, por Tácio, retrato típico dos “nossos garotos” que vez por outra fazem “uma bobagem”, mas sempre protegidos pelo dinheiro e de certa força, pela força e o vale tudo trazido do american way of life.

7 – Vale a pena observar Tácio com maior atenção. Embora não seja protagonista, é o ponto de contato entre os dois narradores. Mais do que isso, encarna e representa a degradação da elite econômica. Será por meio dele que veremos o “novo tipo” de elite em ascensão. Grotesca, bruta, cheia de dinheiro e nenhum pouco de “nobreza”. Talvez por isso o dolorido olhar de Egydio. No Brasil o retrato de sua elite é também o retrato da nação. A decadência então é desoladora. Acachapante. Assim, nessa jornada longa de nossa literatura em apresentar nossa questão da identidade nacional, Vicintin acaba descrevendo, talvez, um novo momento de ruptura. Abandonamos de vez a Europa. Antes saíamos de Portugal e íamos para França. Voltávamos a Portugal. Agora os olhos voltam para os Estados Unidos e para todos os piores exemplos que de lá podíamos extrair;

8 – Imagino que Marilu, a narradora que compartilha a narração com Egydio reforce essa leitura. Cabeça vazia dos estratos medianos do país. Filha de uma burguesia que entra em falência e se recupera e entra em falência e se recupera como quem troca de camisas. Camisas de grifes. O americanismo em suas atitudes surge no momento que o dinheiro, o capital compra-lhe qualquer ideologia. Tudo certo se bem pago, ainda que conhecedora das entranhas estruturais do país, soubesse que poderia manter-se digna mas sem qualquer justiça. O contraste de sua linguagem e a pobreza das referências nela incutida ampliam o contraste de tal degradação, de certo emburrecimento das elites econômicas do país;

9 – Ademais, nesse processo todo, uma constatação que talvez não seja nova. A do país de atalhos, do país incapaz de seguir ou manter qualquer acordo ou disciplina. Nada mais mentirosas que as duas palavras em nossa bandeira. Ordem e progresso. Nunca tivemos. Nunca aceitamos. Esse país do jeitinho, inclusive no cume, já fora extravasado em Não verás país nenhum; contudo, aqui, nas veias de um realismo enfastiado, parece ganhar nova força;

10 – Enfim, As sobras de ontem traduz o significado do título. Sobras apodrecidas, sem gosto ou sabor. O resto. Uma nação-resto em um romance que produz talvez um dos mais amargos e desolados olhares para a barafunda que nos enfiamos. Uma denúncia da grosseria, da brutalidade de do grotesco que tomou a piramide em seu cume. Uma elite econômica inculta, próprio dos papagaios, dos Zé Cariocas. Nesse país de tantos retrocessos é ainda mais desolador quando o poder econômico regride. Ainda que regrida a algo que nunca foi. O preço dessa degradação ainda não sabemos, entretanto, As sobras de ontem parece deixar claro que a musa inspiradora desse elite mudou de endereço, de geografia. E não me parece uma mudança para melhor.

   

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