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10 Considerações sobre Crocodilo, de Javier A. Contreras ou sobre dizer o que ninguém diz

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/03/10-consideracoes-sobre-crocodilo-de.html

O Blog Listas Literárias leu Crocodilo, de Javier A. Contreras publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo, confira:
1 – De uma aridez brutal, que ao mesmo tempo percorre caminhos de trilha dolorosa e que também procura ao fim por alguma compensação metafísica, Crocodilo com seu texto enxuto, pragmático e pungente vai além daquilo que está mais à superfície: um debate corajoso e sincero acerca do suicídio, trazido aqui com a força da palavra, com a força de nomear aquilo que em grande parte a sociedade procura “esconder” com eufemismos auxiliadores na fuga do enfrentamento deste tabu persistente nas culturas humanas. É um livro que a despeito de seu volume de páginas é um tanto exigente de seus leitores, pois mergulha num universo em que não se há respostas às perguntas, como as de Ruy, pai do jovem e suicida Pedro, neste romance, um livro que propõe aos leitores um diálogo difícil, mas necessário a ser enfrentado;
2 – O romance se desenvolve nos sete dias seguintes à morte de Pedro. Quem narra em sua voz carregada de dor e conflitos é o pai, Ruy, jornalista já idoso e pai tardio. Em sua jornada na tentativa de compreender o ato último do filho, que jogara-se de sua janela do edifício, Ruy tenta encontrar-se consigo, com o próprio filho, acima de tudo, tenta também se encontrar com o tempo. Tudo isso em meio a um caminhar ébrio e ainda impactado com o suicídio do filho, que paradoxalmente, a Ruy é quase como um farol a iluminar sua própria conduta e jornada, esta sob um viés autocrítico dilacerante com as descobertas que vai fazendo em sua descida a talvez um fundo de poço acachapante;
3 – E isso é bastante curioso. A perceptível e palpável dor do narrador diante a inesperada perda do filho único vai sendo-lhe um exercício de análise de suas próprias escolhas, fazendo saltar a consciência de certo fracasso. Jornalista ainda em atividade, mas totalmente engolido por um sistema que lhe matou todos os idealismos da profissão, Ruy ainda toma consciência das peculiares características de sua vida familiar com Marta e o filho, de modo que em sua narração é uma espécie de autojulgamento que acaba fazendo da morte do filho uma espécie de momento positivo em que ele, o narrador Ruy, ao que tenta compreender a atitude do filho acaba percebendo seus erros, especialmente, ao longo da vida;
4 – Aliás, uma das interessantes discussões proposta pelo romance é desnudar como ainda em pequenos círculos de relações a razão do que conhecemos e desconhecemos uns dos outros não é uma matemática exata. Mesmo em pequenos núcleos familiares, caso da tríade do romance, o amor e o relacionamento não é totalitário no sentido de que pais e filhos compartilham as mesmas confidências. Vê-se isso em tudo aquilo que Ruy desconhece sobre o filho e que a mãe, em algo parece-me natural em nossa cultura, tem mais conhecimento. A verdade atroz, uma delas, é que Ruy aos poucos talvez vá percebendo suas falhas enquanto pai;
5 – Entretanto, nesse jogo que não é exato, suas lembranças o levarão a outras experiências com o filho que são apenas dos dois, que mesmo Marta desconhecia. São experiências diferentes, cada um dos pais com a sua própria, sendo que pelas características do romance e obviamente pela escolha do narrador, será Ruy o mais exposto em suas falhas enquanto pai. Contudo, isso também deve ser observado a luz de um homem cujo suicídio do filho desperta-o para outros fracassos de uma vida comum [ainda que a vida comum de Ruy tenha sido uma vida comum com certa carga histórica];
6 – Nesse sentido, o livro acaba abrindo um segundo trilho interpretativo. O suicídio, por certo, tem sua centralidade na narrativa, porém, ao passo que a morte do filho leva ao pai resgatar sua própria existência e da forma dura que se dá, temos aí um romance sobre o tempo, sobre o desgaste e a tragédia do tempo. Ruy é um homem de idade já avançada, acachapado, é claro, pela morte jovem do filho, mas também acachapado pelo tempo e pela vida, a que já foi e o pouco que lhe resta. Há uma espécie de prelúdio dos últimos dias em que o narrador-protagonista olha a frente e pelo espelho. O tempo e a velhice desempenham no romance também força interpretativa;
7 – Além disso, quanto ao tempo, a própria morte de Pedro meio que estabelece a metáfora de fim de uma época. É como se encerrasse um período, não apenas dos dramas familiares deste pequeno círculo, mas um ciclo do mundo, a cisão de um tempo que ficou para trás, um tempo nostálgico e algum idealismo, e um tempo que já não é mais a Ruy, seu tempo. Tornado invisível pelo condicionamento e pelo apagamento de seus ideais, o contraste entre o filho morto e o pai velho e cansado se torna ainda mais voraz;
8 – Mas antes que se esvaíam as possibilidades do corpo deste texto, deste post, gostaria ainda de atentar para outros dois elementos que considero muito relevantes nessa narrativa, que a despeito de sua escrita “limpa”, sem arroubos estéticos ou mesmo experimentações, há uma força grande quando observamos como nela se está presente o corpo, os corpos humanos, no caso. Do corpo disforme que se arrebenta no solo aos corpos tocados pelo tempo e suas consequências. Em nível, quem sabe mais inconsciente, os corpos tomam certo protagonismo aos olhos do narrador, talvez influenciado pela decadência do próprio corpo através dos diferentes agentes do tempo. E em geral, o olhar de Ruy para o corpo, para os corpos, e principalmente para os sofrimentos impostos aos corpos humanos, à sua fragilidade, à sua obsolescência acaba se destacando aos olhos argutos do leitor. Neste romance os corpos sofrem, sofrem um bocado, tantos os corpos vivos como os corpos mortos. Crocodilo é também um livro a refletir sobre o corpo e a dependência humana deste invólucro imperfeito;
9 – Outro elemento não menos importante no romance é talvez a procura ou a mensagem metafísica nele presente. Há de se observar que não é gratuito o romance narrar os sete dias após a morte de Pedro, há nisso, claro, a simbologia cristã que é falada até no livro. Isso um contraste voraz com a família de ateus comunistas do tempo da ditadura. Todavia, há por meio de um amigo de Pedro a provocação aos pais se o fato destes não terem religião, se deveria se supor que os filhos não a quisessem [as religiões], para além disso a experiência subjetiva dos mistérios. Nesse aspecto a relação e fixação de Pedro em sua busca através de seu trabalho pela verdade, a verdade em sua fixação com o crocodilo que ao cabo meio que provoca a conversão de Ruy à metafísica mostram talvez o discurso pelo qual o romance procura ou tem seu poder;
10 – Enfim, Crocodilo é de uma grande riqueza. Curiosamente, diferentemente da grande parte da nova geração de escritores, não há experimentalismos estéticos nesse trabalho de Contreras. Parte de uma simplicidade construtiva que acaba dando vigo à potência do tema, pois que, sim, os temas e os debates contidos na obra são pesados ao ponto que talvez se perdessem em experimentalismos. Assim, a aridez do texto, como aliás, em parte deve ser o bom texto jornalístico se pensarmos no narrador Ruy, tudo é preciso, conciso, mas extremamente violento e árido pela transparência e sinceridade que saltam aos olhos do leitor as palavras do narrador. Um romance exigente de seu leitor, por isso mesmo, um belo romance.
     

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