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10 Considerações sobre Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli ou sobre acontecimentos que talvez nem tenham acontecido

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/06/10-consideracoes-sobre-nada-me-faltara.html

O Blog Listas Literárias leu o e-book Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli publicado pela editora Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Esta é minha terceira leitura de Mutarelli, e posso dizer uma coisa: embora tenhamos temáticas que se congregam e somem, são narrativas marcadas distintamente pela estética, pela forma. O grifo de abdera, por exemplo, um quadrinhos inserido no livro, já O filho mais velho de Deus, três partições de uma narrativa absurda. Neste Nada me faltará (2010) a arriscada escolha de nos entregar uma novela rápida constituída apenas por diálogos. Coisa que só autores como Mutarelli são capazes de fazer sem ataques vorazes da crítica ou leitores;
2 – Ainda que um pequeno recorte da obra do autor, nestas três leituras, por exemplo, é possível dizer que Mutarelli não apenas procura demarcar diferentes atuações estéticas, como joga intensamente com os limites dos gêneros literários. Caso de Nada me faltará. Só o fato de constituir a novela [ou será conto?] através de diálogos já o insere numa parcela muito, mas muito restrita da literatura. A bem da verdade haverá quem questione tal escolha com pertencente ao gênero narrativo, inclusive. São diálogos, apenas diálogos, o que já coloca o leitor num grande labirinto, afinal, cada voz ali está impregnada pela suspeição. Ademais, o diálogo se dá vida a uma oralidade palpável, o extrapolar de uma realidade, por outro fragmenta um bocado o texto de modo que cada interação é como se fosse um pedaço de um mosaico a ser composto;
3 – Todavia há de se ressaltar que o fato de termos apenas diálogos, não considero de modo algum que se extirpa ou se mate o autor do texto. O autor nesse caso é que escolheu quais diálogos nos deixar ver e como autores são ladinos em seus jogos com os leitores, por óbvio, sempre procuram causar algum efeito. Nos conduzir quem sabe por alguma trilha. Há nisso, portanto, a intenção nem que seja mínima, de nos dar peças a elaborar uma narrativa. No caso do romance uma narrativa sobre Paulo Maturello que retorna depois de desaparecido há mais de um ano, sem lembrar de nada, muito menos de onde estão a filha e esposa desaparecidas;
4 – A partir disso, tudo começa a se tornar misterioso. Os diálogos em princípio dando conta da surpresa do regresso, de servirem como introdução ao evento estranho, afinal, para Paulo é como se ele não tivesse ficado todo esse tempo fora, aos poucos vão gradualmente aumentando a tensão e instigando as desconfianças dos leitores – e também dos personagens próximos a Paulo, que começam a ter dificuldades em lidar com o homem que retorna, o homem que já não é mais ao mesmo; este, por seu lado, tenso por aparentemente não conseguir atender às expectativas e interesses de amigos e familiares;
5 – O mistério não apenas envolvendo o desaparecimento de Paulo mas especialmente pelo sumiço de filha e esposa acaba aparentemente apontando para uma novela de ares policiais. Há até mesmo um investigador durão que entra na conversa. O leitor assim como parte dos personagens parece querer investigar o que teria acontecido com as mulheres? Teria Paulo feito algo errado. O fato de termos diálogos assim como limita, amplia as possibilidades imaginativas dos leitores nessa questão. Mutarelli encontrará até mesmo formas de jogar pistas sobre quem sabe a solução para o mistério. Seria um livro de Foucault? Talvez aí resida um dos perigos de distração do que talvez seja o cerne do problema nesta obra, pois é tentador olharmos o texto enquanto narrativa policialesca, querer descobrir ou ao menos conjecturar uma resposta nesse sentido. Esse caminho, porém, pode ser distração que nos afaste do verdadeiro incômodo que fala a obra;
6 – Embora não pareça, desconfio que este livro esteja mais para a ficção científica que para uma narrativa policial ou de suspense como aparentemente pode se supor. Trata-se de uma narrativa mental. Também uma narrativa espaço-temporal marcada por uma paranoia a la Philip K. Dick. Uma narrativa que parece já estar  confronto com o próprio conceito de realidade “nada me convence. Porque a realidade é algo que deve ser compartilhado, não é mesmo” pergunta Paulo cada vez mais paranoico até o ponto que desconfia que sequer desapareceu “acho que eles estão tentando plantar alguma ideia na minha cabeça…”
7 – Aliás, a paranoia é signo relevante no livro. Os diálogos dão agilidade e fluência à leitura, o que não significa que os recortes desses diálogos não desencadeiem processos de construção dessa paranoia, diálogos carregados de tensão e que aos poucos colocam seus personagens ao mesmo tempo suspeitando e em suspeição. Todo mundo suspeita algo, de Paulo aos amigos e familiares que o recebem de volta aos leitores. Ninguém mais tem certeza de qualquer coisa e desconfiam de tudo. Nessa tensão construída atinge-se inclusive picos de suspense e horrores – nesse segundo caso não concretizados explicitamente;
8 – Parte dessa paranoia tem a ver com a aproximação do obra com a ficção científica. Ao questionar o status da realidade, Paulo nos joga o tempo, o espaço-tempo como elemento relevante na estrutura da novela. “eu pensei então, talvez, aquilo ainda não tivesse acontecido” e diz “quando o porteiro falou que outra família morava lá, não senti que essas pessoas ocupavam o meu lugar. Senti como aquele lugar ainda não me pertencesse” como se de algum modo a esposa e filha desaparecida ocupassem outro universo “o que você está tentando dizer é que você sente que esse tempo só passou para quem estava fora da sua experiência. é isso?”;
9 – Mas nada disso terá uma solução vinda da narrativa. Diálogos já são por natureza bastante abertos e demandantes do leitor, quando constituintes na totalidade de uma obra, parece-me que naturalmente ela também exigirá mais dos leitores quanto a soluções e escolhas. Nesse caso, os leitores são chamados cada qual a resolver os mistérios da obra. Seria Paulo um viajante do tempo? um abduzido? um paranoico com a mente afetada por algo muito ruim que tenha feito? As portas estão abertas e Mutarelli joga de todo jeito com os leitores, inclusive nos deixando os dois últimos capítulos aparentemente desconexos e demarcados por certo anticlímax;
10 – Enfim, apesar de esta ser curta e rápida, está recheadas de camadas e mais camadas de possibilidades e mensagens como de costume em narrativas de Mutarelli. Há algo de mitômano em sua literatura e em como ele trata da paranoia e das conspirações. Em Nada me faltará se você puxar um fio, parece que muitos e muitos novelos podem sair do que está abaixo da superfície do texto.
  

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