Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/01/10-consideracoes-sobre-o-chamado-de.html
10 Considerações sobre O Chamado de Cthulhu e Outras Histórias, de H. P. Lovecraft ou sobre deuses e astronautas
O Blog Listas Literárias leu O Chamado de Cthulhu e Outras Histórias, de H. P. Lovecraft do Volume I da Biblioteca Lovecraft da Companhia das Letras. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – O Chamado de Cthulhu e Outras Histórias, de H. P. Lovecraft é a organização da Companhia das Letras da Biblioteca do autor e que reúne nesta edição com tradução de Guilherme da Silva Braga contos dos mais representativos da bibliografia de Lovecraft, entre eles o que nomeia a publicação, A Sombra do Tempo, A Sombra de Innsmouth, Dagon, entre outros. Por isso é leitura indispensável para os fãs do gênero fantástico, incluídos aí o horror e a ficção científica que parecem fundir-se em cada um dos contos integrantes da publicação;
2 – Aliás, essa imbricação entre horror e ficção científica pode ser percebida no próprio conto O Chamado de Cthulhu e especialmente A Sombra do Tempo que pende mais ao segundo e a seu modo parece convergir para olhares próximos a Wells e sua Máquina do Tempo. Além disso, poderíamos observar ainda em Lovecraft a antecipação de muito do que viria a ser trabalhado num Eram os deuses astronautas, de Daniken, pois que os contos aqui reunidos apontam não apenas para uma mitologia terráquea, mas cósmica e desconfiada dos grandes mistérios do universo e todas as criaturas e divindades à espreita para serem convocadas por humanos desejosos de divindades, sejam elas pagãs ou sacras;
3 – Contudo não é fácil tecermos comentários a respeito de obras com tamanha fortuna crítica, sempre caindo-se nos riscos de chover no molhado ou então de viajar na maionese em busca de uma perspectiva diferente, mas que nem sempre se encaixa. Por isso, neste post, nos dedicaremos a elementos que independente do quão debatidos, apontam para os motivos do quão relevante ainda é a leitura de H. P. Lovecraft e suas publicações das décadas iniciais de um Século XX e que no caso de alguns contos, inclusive, seus personagens são atravessados pela até então Grande Guerra. E talvez não arriscamos nada aqui, o primeiro dos motivos é que para além de toda a representatividade ao gênero, é que a leitura é convidativa a despeito dos horrores que despertam à sombra. Há – com o acréscimo da tradução – um aprisionamento do leitor às páginas desde seu primeiro contato pois que todas as virtudes e floreios do bom narrar encontram-se presentes em cada conto de modo que o leitor é tragado para a estória, que o envolve como um invólucro do qual se deseja apenas o desfecho surpreendente que nos reservam os contos;
4 – Nesse sentido é preciso observar as características de praticamente a totalidade dos narradores dos contos aqui reunidos. Todos eles uma primeira pessoa culta, erudita e cambaleante entre a ciência e os mitos. Dessa tensão torna-se claro, inclusive, aquele velho requisito de Todorov quando nos desnuda a literatura fantástica, esta relegada ao tempo das suspeições. Assim entre delírios e paranoias os narradores dos contos aqui quase nunca tem a certeza de cravar os estranhos acontecimentos e encontros que lhes sucedem. São almas em dúvidas mas que não negam o poder que as possíveis experiências metafísicas lhes proporcionaram, via de regra grandes assombros, medos e horrores. Mesmo em contos que o sobrenatural é vivenciado quase numa concretude, caso de A casa temida, há dúvida da experiência permanece;
5 – Deste modo, então, sempre no tempo da suspeição e no campo dos tabus e medos que parecem importunar a alma do autor, do horror mais tradicional a evocar Poe, como no citado A casa temida, ou então num projeto que se torna um tanto mais visível e audacioso, Lovecraft parte então para a construção de uma mitologia própria e com histórias que acabam então por ingressar de vez nas sociedades humanas e a se tornar referência para toda uma geração que veio depois dele;
6 – Todavia, se prestarmos atenção não trata-se de mitologia sem raízes em muito do que viemos construindo ao longo dos tempos enquanto narrativas. Tanto Dagon quanto O Chamado de Cthulhu adentram um campo muito rico em histórias e que mesmo antigas cartas naúticas nos revelam: sob as águas repousam terríveis e tenebrosas criaturas, que pela criatividade de Lovecraft ganham identidades mais potentes. Além disso, o leitor arguto perceberá nos diferentes textos que muitos contos parecem analisar seus respectivos tempos de modo que trazem um e outro elemento de debate que acabam discutidos em sua literatura. E aqui novamente podemos aproximar Lovecraft de Wells especialmente em A sombra de Innsmouth que assim como trabalhos de Wells está impactado pelas teorias de Darwin. No caso desse conto elabora-se inclusive um ciclo místico de retorno ao princípio da evolução;
7 – E já que adentramos a este conto, talvez seja um dos exemplos de como a xenofobia imputada a Lovecraft por seus preconceitos a estrangeiros, mais tome forma enquanto representação de um sujeito que teme demasiadamente o outro. Innsmouth com seu segredos e rituais parece constituir todos os degredos de uma sociedade de modo seu narrador não observa o lugarejo apenas com seus preconceitos e asco, mas também sempre com muito medo de tal forma que a experiência de seu narrador é atroz. Nesse conto o outro é destituído de qualquer humanidade, é corrompido, pagão, um grande mal. Entretanto há um movimento final que deveria nos levar a um debate mais amplo e com espaço maior que um post, pois que nenhum medo ou terror se torna maior a despeito de qualquer preconceito que o reconhecimento de seu “eu” como também um “outro”. Talvez por isso todo o caminho doloroso, todo o rechaço, pois que o “outro” que me atemoriza também pode ser “eu”;
8 – Vejamos, portanto, que a despeito da aventura e dos sustos, Lovecraft nos entrega mais que entretenimento. É preciso ler sem concepções prontas, para o bem e para o mal, pois seus contos narram estórias dos dilemas dos homens de seu tempo, mas além disso, dilemas ainda latentes no caminhar humano. O campo das incertezas do fantástico nos servem como espécie de farol de múltiplas mensagens. Talvez a mais significativa e que voltou a nos tensionar neste século XXI quase que como uma repetição é que as incertezas permanecem muito vivas, aliás, como já frisei aqui noutras avaliações do gênero, dando certa razão a Adam Roberts quanto ao tensionamento que move a ficção científica há pelo menos os tempos da Reforma. O fantástico em seu tempo incerto assim nos soa tanto como aviso de que continuamos sem saber muita coisa, ou que pelo menos há mais mistérios entre o céu e a terra que supõe nossa filosofia, ou nos mostra que embora, caso dos narradores de Lovecraft, mesmo havendo a dúvida quanto à experiência sobrenatural, isso não retira o impacto e o medo sentidos e percebidos como real. E aí teríamos que debater as percepções, outra coisa em voga. Na verdade, se ao andar até o toco de pau, passará anos relatando noite que fugiu de uma criatura disforme e horripilante;
9 – E se até aqui falei de elementos que tratam mais de uma leitura recolhida, não há de se desprezar o prazer de leitura dos contos de Lovecraft. Todo conto que for uma chamado à aventura tende a ser um bom conto. E não importa quais tenebrosas jornadas nos ofertem, se o chamado for feito, o leitor desliza pelas páginas. Aliás, neste leitor específico há diferentes comportamentos que as obras provocam. Tem aquela leitura tal qual dirigir um fusca, dá um trabalho, mas vá lá, tem seu prazer. Outras você dirige um bom carro, mas a estrada passou e você já esqueceu. Outras são tão truncadas que você parece dirigir um carro sem marchas e folga na direção, sem falar naquelas que você praticamente luta box com o texto. Outras, as melhores, essas é como se tivéssemos a melhor e mais eficiente das naves, você sente prazer em avançar cada linha em direção ao espaço. Caso deste livro;
10 – Enfim, H. P. Lovecraft é daqueles autores que mais dias menos dias teremos de nos encontrar. Neste volume com seus contos dos mais representativos, vemos o fulgor de um gênero tão cheio de atrativos. A inter-relação entre ficção científica e horror é bastante evidente, tal como os tensionamentos que brotam do âmago de um autor que expõe em seus trabalhos suas virtudes e seus defeitos. Além disso, como já dissemos, pelo que representa e por toda uma mitologia que reverbera em diferentes expressões da cultura, é demanda necessária a quem procura pelas narrativas mais relevantes no planeta.