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10 Considerações sobre O verão tardio, de Luiz Rufatto ou sobre as coisas comuns e reinantes da existência

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/07/10-consideracoes-sobre-o-verao-tardio.html

O Blog Listas Literárias leu O verão tardio, de Luiz Rufatto publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 – O Verão tardio de Luiz Rufatto talvez seja o retrato mais fidedigno de uma nação comum. Quando penso em nação comum, penso numa nação que partilha de um mesmo real. Um realismo coletivo, menos mediado, quem sabe. E aqui provavelmente algo que de todo não saiba me expressar. As tintas são impressionistas, impressionista a repetições. Os cenários descritos aos mínimos e mundanos detalhes. O frasco de Cebion, a pasta de dente, os quadros e pôsteres às paredes que surgem. Os detalhes espartanos de um quarto miserável contrastando com a riqueza de detalhes em sua descrição…

2 – Já a temática e a natureza dos dramas que saltam, esses, esses me parecem algo difícil de explicar. O povo e sua vida comum ganha a centralidade do debate. Nisso o risco de pensarmos nele um romance populista, o termo é inexato e prejudicial. Todavia, sem ser ser populista no sentido político da coisa e suas perigosas acepções, o romance traz para o centro da narrativa o povo, o povo em todas as suas complexidades, incongruências, contradições e experiências. Acima de tudo, suas experiências;
3 – É, pois, um romance sobre o povo, mas não penso um romance partidário ou panfletário. Pelo contrário, o povo que aqui está, ilumina justamente as estruturas profundas de uma sociedade que no tempo do romance, pode ser que nos diga ou conte muito sobre a realidade absurda que nos cerca. Aliás, o termo Brasil Profundo vem sendo utilizado muito ultimamente. É possível que Rufatto seja quem melhor compreenda o significado disto;
4 – A jornada de Zézo em sua caminhada extremamente descritiva (meio que um diário em/de uma semana) por certo será compreendida e partilhada por quem anda por esse Brasil às vezes silencioso, decadente, mundano e popular. Um Brasil que quando explode temos golpes, polarizações, rixas e brigas no topo. E também embaixo. Por isso é fundamental e essencial olhar para a cidade que se eleva diante o leitor nesta obra;
5 – Aliás, o retorno de um filho menos pródigo e mais cético e vencido encena de certo modo essa busca pelas raízes de um país profundo. O que não implica sair de uma selva cimentada a uma floresta. Já não é mais esse tempo. O profundo também já está urbanizado. Mas não menos profundo. A metáfora da jornada, de uma São Paulo, neste romance, sem protagonismo, a uma Cataguases é, penso, uma forma de nos narrar esta ida ao profundo. Nessa jornada a arquitetura, as gentes, os espaços e o tempo vão sendo descritos com muitos detalhes de um mundo que mudou;
6 – A degradação, também. Prédios decadentes, em ruínas, como as pessoas que habitam o romance. Um romance que por vezes parece nos jogar a certa picardia; entretanto, curiosamente, estão todos mais para pobre-diabos, estes tão notáveis, às vezes postos em molduras de um novo herói no romance de 30. Mas se lembram os pobre-diabos de lá, também se distanciam destes;
7 – Não se trata de malandragem, de esperteza, ou tampouco de vencer a miséria. Todos aqui parecem estar abatidos por certa resignação, melhor exemplo, quem sabe, Izinha. Aliás, a irmã de Zézo e sua família, parecem-me um belo exemplo de como Rufatto coloca diante do leitor as estruturas profundas e sociais que em última instância reverberam numa política real. A precariedade e os valores estão todos distendidos em nome de uma sobrevivência acostumada e dependente do torto. Tudo é tão triste e permanente que justamente faz saltar toda a angústia da peregrinação deste protagonista;
8 – Um protagonista que nos narra em dois tempos. Aí, também outra forma de dividir e unir o mundo em um só movimento. Zézo narra em dois tempos, no da memória, quando seus flashbacks aos poucos revisitam a infância. Nesse jogo, o contraste; o trauma que mudará sua vida drasticamente, mas também o positivo, certa felicidade naquele tempo, a despeito do que viria encontrar futuramente. Era de certo modo, feliz. Já o presente, este, sempre gorduroso, decrépito, decadente. Ele é seu próprio tempo. As arquiteturas e os comportamentos e contratos sociais que se desnudam refletem em si, em sua imagem. Em seu corpo falimentar. Zézo é também este espaço profundo. Um profundo em que todos estão condenados. Um presente sem escapatória, sem solução, papéis difíceis de se escapar, num naturalismo não sei se “neo” ou um naturalismo permanente;
9 – Rufatto nos dá, assim, essa sensação do estado de permanência de nossas misérias. Não misérias econômicas. Miséria das almas. A frente de Zézo e por meio de seu narrar, os valores são triturados. Todos têm culpa. E essas culpas nos são apresentadas com muito tato a cada nova visita deste homem em despedida. Cada alma que surge a sua frente nesse retorno ao profundo, ao nascedouro, é o surgir, o iluminar dos desvios que em certo sentido nos explicam nosso próprio e torto, tortuosíssimo mundo chamado Brasil;
10 – Enfim, um retrato fidedigno, reconhecível por quem anda por aí, nos espaços concretos em que somos ainda muito, muito arcaicos. Desconfio que essa possa até ser uma das razões do naturalismo não nos abandonar nunca, nossas posturas, nossas estruturas, nosso íntimo ainda está embebido no arcaísmo das almas que sobrevivem como se ainda estivéssemos numa selva a ser desbravada. Talvez o seja mesmo essa selva. Essa é a dureza que Rufatto nos faz ver em Verão tardio. Uma dureza que sem as mediações, em grande parte nós podemos reconhecer ou mesmo confessar de partilhar um ou outro dos dramas deste romance.

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