Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/05/10-consideracoes-sobre-tudo-o-que.html
10 Considerações sobre Tudo o que poderíamos ter sido, de Zeka Sixx ou sobre gozos e desgozos
O Blog Listas Literárias leu Tudo o que poderíamos ter sido, de Zeka Sixx publicado pela editora Coralina; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Em Tudo o que poderíamos ter sido, Zeka Sixx retoma personagens de seu A era de ouro do pornô, produz diálogos entre os dois romances, mas tem nesse novo lançamento algo mais acurado que o anterior, talvez processo natural do avanço pela narrativa. O que se mantém igual é o vazio existencial de personagens mergulhados em vidas despropositadas, regadas a drogas e sexo escapista enquanto o cenário, uma Porto Alegre noturna, decai frente a uma atônita geração que com dificuldade parece compreender seus fracassos;
2 – Marcado pela tendência contemporânea de nossa literatura em fragmentar as vozes do romance, é a de César que talvez mais evidencia não apenas a decadência dessas almas, mas as contradições na própria decadência. Com a assertividade que pode levar o leitor à concordância, aponta ele que “a decadência de uma sociedade, por mais paradoxal que pareça, fica escancarada quando se troca o sexo e a libertinagem pelo fanatismo religioso” fala ao notar a mudança da paisagem urbana, a expulsão dos puteiros da Avenida Farrapos por templos pentecostais. Em sua fala a radicalização dos extremos, ao passo que não deixa de ser preocupante o fundamentalismo e fanatismo religioso que aponta crescimento, como também não deixa de ser um amargo escape o hedonismo alienado de seus personagens em fuga, para os quais o sexo representa muitas vezes o outro extremo dessa radicalização, especialmente pela fragilidade dos vínculos e das afeições;
3 – César é uma dessas vozes do romance, meia idade, fruto de uma geração empobrecida classe média, menos pela economia e muito mais pelas estruturas de privilégios e proteções que os atiram a uma existência vazia e nostálgica, algo que parece transparecer no próprio título do romance. Junto a ele vozes de Lola, uma DJ das noites gaúchas, de Júlia, irmã de César e um Max Califórnia, que protagoniza o livro anterior tal como Bianca, personagem que pincela metaliteratura no romance;
4 – Nesse aspecto pode-se dizer que embora fragmentado em diferentes narrações em primeira pessoa, tirando-se as experiências pessoais, na constituição psicológica dessas personagens há muito mais semelhanças que distinções. Todas arcam com certo vazio existencial, encontram na vida libertina [embora deteste e não me agrade muito o termo transformado em negativo enquanto poderia carregar bons ventos] uma forma de sobrevivência mundana e empobrecida, como se procurassem algo a completar, a encher os buracos existentes em suas identidades. Curioso também como nas contradições imanentes a qualquer narrativa isto pode servir ao conservadorismo que em sua radicalidade derruba cabarés para erguer templos dizimistas;
5 – Quanto aos narradores há ainda de se fazer um destaque crítico. Há na obra a audácia e o desejo de romper o pré-determinado, como, por exemplo, o lugar de fala, que encontra curiosamente em Lola crítica voraz. Pactuo da perspectiva que se é possível romper este paradigma, tanto quanto em determinados casos ele é essencial. No caso deste romance, embora com qualidade, nesse quesito especialmente, há de se dizer que mesmo sendo Lola uma boa personagem, se pensarmos em lugar de fala, ainda que não totalmente isso, ela pode ter dificuldades em convencer. Na verdade tem menos a ver com lugar de fala do que a dificuldade em se tirar dela as marcas da voz masculina do autor se intrometendo na narrativa. Há em Lola claras intrusões da fala do homem, dum homem específico, inclusive; especialmente em falas que tenho dificuldade de convencer-me feminina, isto em todas as gradações do feminino que nos permitamos. Não creio que uma mulher, por exemplo, faça citação aos seus gorgomilos, essa uma expressão tipicamente masculina [por razões óbvias]. Todavia isto não prejudica a narrativa, enriquece-a em possibilidades de debate;
6 – Mas retomando o livro, assim como o anterior já citado, o sexo despudoradamente acompanhará o leitor do princípio ao fim. Contudo, neste novo, menos enquanto estratégia para chocar e muito mais agregado às demais complexidades de seus personagens, ainda que a foda e o trepar não percam protagonismo. É nesse sentido que parece-me o livro mais apurado que o anterior. Se em A era do pornô havia a referência clássica aos velhos filmes e ao nascer dessa geração agora em declínio, este novo vem para o presente e para uma espécia de resignação pelo fracasso. Nem mesmo o sexo, ainda relevante, se apresenta nas mesmas condições que outrora, cada vez mais impessoal e vazio a ponto de os personagens sequer lembrarem dos artistas que lhes motivam uma punheta ou siririca. Fastio talvez seja uma das palavras para caracterizar o que incomoda o cerne deste romance;
7 – Fastio, decadência e cansaço. Lógicas que se expandem para uma cidade e sua vida noturna. Como na obra anterior temos enquanto cenário a Porto Alegre burguesa com seus bares e casas de show. Também aqui a tentativa de se propor que a cidade passa por algo não muito compreendido a partir dos anos 2010. Novos comportamentos, o esboço de uma “revolução feminista” a partir da liberdade sexual, talvez tardia na cidade, muito tempo depois dos hippies. Isso, claro, na perspectiva de suas vozes, especialmente a de César e de Max Califórnia que em poucos capítulos também traz seu olhar a partir da relação sociedade e pornografia;
8 – Somado a isso, narrativa recente, também é permeada pelos eventos recentes deste país incongruente e contraditório. As primaveras e os golpes têm seu destaque ao fundo das vidas que ainda que distantes da efervescência política, militam uma militância pró-forma cujas feridas podem ser curadas em noites loucas tailandesas. Há nisso, na exposição das contradições, também espaço para certa criticidade em tempos de polaridade política a real relevância da burguesia de esquerda escancarada especialmente através de Júlia que em diferentes sentidos é curioso e interessante retrato de seu tempo;
9 – Assim, com muito sexo, drogas e rock and roll, aliás, espírito que dá conta da notalgia existente em toda a narrativa, os personagens parecem desfilar do nada ao nada. Os “grandes feitos” como os de Max Califórnia são irrelevantes, a incapacidade de seus personagens, até mesmo em suas escolhas mais radicais, não se concretizam, o fracasso persiste confortavelmente em pessoas que mantêm para com a cidade curiosa relação entre paixão e descaso. Nem mesmo a fuga última promete-se definitiva, uma pausa, um pulinho ao Uruguai; aliás, não caso único na literatura gaúcha recente. Assim, o romance parece trazer alguma consciência ainda que os caminhos mantenham-se enevoados;
10 – Enfim, o acuramento do autor de uma obra nos possibilita ainda mais a análises do vigor e da relevância deste romance. É obra com “aura”. Obra que não se faz moldada por conveniências e cuidados, o que é outro ponto positivo. Zeka Sixx se permite expor-se em todos os aspectos. É obra de calagem profunda porque não foge de ser contraditória e provocativa. Pelo seu potencial de tornar-se incômoda em diferentes estratos é narrativa das boas e que de algum modo traduz um pouco deste presente que teima em gritar tudo o que poderíamos ter sido, mas não fomos capazes de concretizar.