Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/04/10-consideracoes-sobre-um-romance.html
10 Considerações sobre Um romance perigoso, de Flávio Carneiro ou a vida não tem nenhuma lógica
Nestes dias tensos e incertos vimos muitas editoras disponibilizando em e-books obras para que possamos passar essa quarentena.São belas iniciativas, pois sabemos que a leitura tem diferentes ferramentas de auxílio a nós, especialmente agora. Por aqui, além de nossa listinha de obras físicas por ler, aproveitamos para abastecer nosso app e, dentre as leituras de quarentena, a leitura e avaliação de Um romance perigoso, de Flávio Carneiro, publicado pela editora Rocco. Confira neste post as considerações de Douglas Eralldo sobre o livro:
1 – Para quem curte a boa e velha literatura policial e em sua melhor forma, Um romance perigoso é um deleite, especialmente porque em sua identidade de romance-dissertação ou romance-tese que é tanto romance, mas também um poderoso e robusto estudo acerca da literatura policial, para além da narrativa do romance temos uma poderosa rede de construções intertextuais que o torna obrigatório especialmente entre os aficionados pelo popular gênero, seja para concordar com as teses expostas, para discordar ou dar seu pitaco;
2 – No livro os peculiares detetives, André e Gordo, envolvem-se numa investigação não menos peculiar, a de descobrir a identidade de um serial killer que tem matado escritores de auto-ajuda. E aqui vale falar da peculiaridade dos dois detetives, vagantes urbanos por um Rio de Janeiro de botecos e biroscas e cuja investigação de certa forma é feita com distância dos fatos. É como se praticassem exercícios dedutivos, bebendo na origem clássica do gênero, mas não deixando de viverem ao estilo noir que tanto admiram. A bem da verdade a ambos a literatura policial e o noir, especialmente, traduzem-se mais que um gosto literário, mas um estilo ou conceito de vida;
3 – Ainda sobre as peculiaridades dos dois/três protagonistas [e do restante do grupo que se forma], são estranhos associados, André, o detetive oficial que conhecera Gordo, e este lhe ofereceu o andar de cima de seu Sebo para que André montasse seu escritório. A exigência de Gordo, fugindo à solidão do detetive noir, é a de ser um assistente [um assistente bastante arguto] de André ao melhor estilo Dr. Watson. Ambos, no caso, especialistas em literatura e especificamente literatura policial, envoltos por livros velhos e personagens não menos peculiares, mas que a despeito de suas peculiaridades, firmam-se autênticos, pois que cada cidade, metrópole ou não, tem tais e estranhos personagens dos quais contamos histórias. Com isso a investigação coletiva em mesas de bares cariocas desenrola-se em duas frentes para o leitor, a investigação dos crimes que estão ocorrendo, e, claro, a diferentes aulas acerca da narrativa policial;
4 – Aliás, aqui talvez devamos falar da força do romance-tese sobre a narrativa policial. Isto porque detetives e assassino forma um ciclo que somente poderia ser concebido nesta história. É que ambos existem um para o outro, como se o criminoso fosse feito sob encomenda a justificar e dar força à dupla de detetives. Explico-me, pois talvez a maior incongruência da narrativa seja justamente o fato de os detetives especialistas em literatura policial estarem envoltos com crimes cujo assassino é também aficionado por literatura policial. Especialmente Dashiell Hammett; e que nas cenas dos crimes deixa pistas com um livro de Chandler. Portanto, personagens feitos sob demanda, e cuja suposta possibilidade de incongruência é vencida pelo tom pastiche assumido pela narrativa;
5 – Sim, como acontece em algumas obras de nossa narrativa policial nacional, a alma de pastiche, o humor do deboche, ou no mínimo da boa brincadeira, é um de seus recursos. Vejamos nosso Xangô de Baker Street, entre outros, por exemplo. Há uma natureza de pastiche na narrativa, uma ideia aparentemente intencional de brincar com os principais elementos do gênero sem medo algum de jogar e provocar com seus clichês, desde os clássicos aos nossos próprios modelos, pois veremos, por exemplo, ecos de Marcos Rey durante esta jornada. Essa verve pastiche e brincalhona, inclusive em suas críticas a determinadas leituras nacionais é mais um dos elementos divertidos da publicação;
6 – Entretanto se o pastiche e o cinismo que brota de seus personagens nos conduzem com certo alívio ou aparente descompromisso, não se pode pensar que seria isso a representar a narrativa. Estão ali como atrativo, atrativo a uma robusta abordagem quase que teórica sobre a literatura policial. A peculiaridade dos personagens em suas relações com a literatura de gênero nos faz percorrer importante debates sobre a literatura policial e desfilam conceitos e opiniões das mais lúcidas sobre seus autores, sobre estilos e momentos. André e Gordo se por vezes parecem atrapalhados e amadores detetives, em outra perspectiva raramente titubeiam enquanto expertos e vorazes críticos literários;
7 – Mas é sobretudo um romance sobre Dashiell Hammett. Detetives e serial killer se jogam na tentativa de compreensão do autor de O Falcão Maltês. Mais uma vez a força do romance-tese. É como se a narrativa fosse uma dissertação acerca da vida e obra do escritor americano de romance noir. Como uma banca de doutorado, André, Gordo, Valdo Gomes e o serial killer se embrenham na obra e nas diferentes suposições e mistérios envolvendo Hammett, que diga-se de passagem, possui uma grande base de fãs no Brasil e no mundo;
8 – Além disso, não falamos ainda da doçura e da esperteza da grande detetive da obra, Ana, a voluptuosa namorada de André. Trabalhando em São Paulo, distante do amado detetive, aos poucos ela vai se envolvendo na trama e sendo mais do que essencial aos dois atrapalhados investigadores. Ana é a grande força intelectual dedutiva, e brincando com a ironia, dentre o curioso grupo de investigadores que se forma, a que talvez menos domine a literatura policial; mas talvez justamente por isso, a com capacidade de ver o que André e Gordo muitas vezes deixam escapar;
9 – Assim, com personagens curiosos e com uma outra interessante possibilidade de se acompanhar a narrativa que é através da experiência destes personagens para com a cidade vamos nos envolvendo em uma leitura muito saborosa. Isso curiosamente é bastante interessante, pois talvez pela aura de pastiche, ainda que Andre e Gordo vivam numa espécie de submundo carioca, a cidade mundana de botecos e personagens comuns, a narrativa não carrega a tensão de personagens nacionais que também bebem no noir, como Bellini ou o Detetive Espinosa. Ainda assim, os dois, André e Gordo habitam uma espécie de noir diurno e literário por cenários interessantes e menos turístico de um Rio para os cariocas;
10 – Enfim, não são poucas as razões para ler este belo romance policial. A obra tem a força de bons personagens e vive e discute a literatura de gênero enquanto experiência. Além disso, vale dizer que as discussões literárias vão para além do gênero, pois que em termos de literatura, André e Gordo são eruditos literários que fingem investigar crimes enquanto nos dão aulas de literatura.