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10 Livros para questionar o lugar de fala

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/01/10-livros-para-questionar-o-lugar-de.html

Parto do princípio de que a literatura é o campo de todas as possibilidades, de que a literatura dá vazão a todas as alteridades. Parto do princípio que não raro a literatura é produzida por deslocados, por almas em diáspora que procuram compreender o mundo não através do eu, mas dos outros. Compreendo também que de fato existam obras que não mais fazem que reproduzir estereótipos ou tentativas de descrever/escrever o outro de forma idealizada pelo eu. José de Alencar que o diga, Parto que isso está mais ligado à incapacidade de o/a autora/autora em colocar-se no lugar do outro, de exercitar a alteridade que propriamente tem a ver com o conceito de lugar de fala [que têm méritos, mas que carece ainda de muito debate]. Compreendo ainda que há a possibilidade das más intenções, que não se descartam as apropriações interesseiras. Ao leitor e ao crítico cabe ou exige-se a competência de distinguir os casos. Contudo limitar a literatura a possíveis lugares é tão somente cravar mais um dos tantos punhais que se tentam cravar neste talvez último reduto de liberdade criativa. É nesse sentido, a despeito das polêmicas levantadas por American Dirt que selecionamos 10 obras que servem para questionar o conceito de lugar de fala, confira:

1 – Orlando, de Virgínia Woolf: A obra traz o protagonista Orlando que acaba sendo homem e também mulher durante sua existência. A obra é considerada uma referência da literatura feminista, mas talvez numa acepção radical do conceito de lugar de fala seria inviabilizada de escrever a experiência de Orlando enquanto homem;

2 – Luuanda, de Luandino Vieira: O conceito de lugar de fala pode causar terríveis apagamentos ou questionamentos como a esse autor que é um dos mais relevantes da literatura angola e dos Palops. Inclusive este livro de contos é obra essencial da literatura angolana, entretanto embora tido como autor luso-angolano, Luandino nasceu em uma cidade do Tejo, um português que como poucos tratou da colonização portuguesa na África na perspectiva e com a cultura de Angola;

3 – Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: Como pode um escritor branco, burguês e funcionário escrever sobre o sertão? Essa é uma pergunta que poderia bem ser feita se tomarmos ao pé da letra o lugar de fala. Contudo, o resultado bem sabemos, com sua exímia observação e alteridade, Guimarães Rosa nos apresenta Riobaldo, um sertanejo autêntico e inquestionável que narra uma das basilares narrativas nacionais;

4 – Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie: Tomamos esse como exemplo, entretanto bem poderia ser qualquer romance com Hércule Poirot um personagem tão forte de impressões que figura dentre a categoria dos personagens que desconfiamos existir. Pois ele é um dos protagonistas da literatura policial de Agatha Christie e que novamente, tomado ao pé da letras, seria questionável que ela enquanto autora escrevesse focalizando este personagem já imortalizado entre os leitores. Aliás, mais uma vez citando possíveis radicalismos, bem possível que se vitimasse o próprio gênero policial caso exijamos ortodoxia de que uma obra policial só terá valor se escrita por policiais;

5 – As Crônicas do Gelo e do Fogo, de George R. R. Martin: A série iniciada com A guerra dos tronos é marcada pela multifocalidade. Seu narrador em terceira, a cada capítulo quase entra em simbiose com o/a personagem em foco. Muitas delas mulheres, e não raro é discutido acerca do protagonismo feminino, na série ou nos livros [espero que nos livros Daenerys tenha um desfecho mais digno, falando nisso]. É incontestável que as narrativas trazem mulheres fortes e em posições raramente vistas não apenas na fantasia como em toda literatura. Mas se nos apegarmos ao lugar de fala talvez se encontre quem diga que Martin tenha se apropriado do feminino ao focalizar Cersei, Brienne, Daenerys, etc…

6 – Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado: Também serve para praticamente toda a obra do autor baiano, que se pego no lugar de fala talvez tenha discutida sua autoridade enquanto narrativa popular dos povos do nordeste, povos dos brasis. Sua obra em geral parte da perspectiva dos resistentes, dos oprimidos e grita contra as tiranias e o coronelismo, sendo inegável que é muito eficiente em sua literatura a despeito de não ser propriamente habitante de seu lugar de fala;

7 – Memórias de um burro, de Condessa de Ségur: A despeito das fábulas humanas presentes na narrativa, nos convencemos do narrador enquanto burro. O narrador parece-nos de fato um burro muito esperto. O trazemos aqui como exemplificação que a literatura é um campo de possibilidades desafeito a muros, cercas e fronteiras. Temos alguns interessantes narradores animais. Virgínia Woolf escreve sob a forma de um cão. Outro exemplo relevante é Cavalo de Guerra, de Michael Mopurgo em que o autor procura alteridade com aquele que por questões técnicas óbvias é impossibilitado de exercer seu lugar de fala. É um exercício de alteridade que tudo bem, encontra uma forma de narra a guerra, mas que também não deixa de se preocupar com a perspectiva do animal levado para ela sem ter qualquer culpa no cartório. O bom autor deveria – e as vezes o é – um espírito sem corpo que é tentado ou muitas vezes sente-se obrigado a experimentar outras vivências;

8 – Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe: Lugar de fala pode ainda levantar dúvidas nada razoáveis. Por exemplo, convincentes autores sobre mentes desequilibradas teriam que ter propriamente a garantia do lugar de fala? Um serial killer apenas poderia narrar um serial killer? Quando exitosos, seria prova de pertencença, de habitar o lugar de fala, o que transformaria Poe também num emparedador de mulheres? É uma provocação, bem sei, mas talvez haja alguma lógica nela;

9 – Enterre seus mortos, de Ana Paula Maia: Este como grande parte da obra da autora desnuda os processos de violência geralmente marcados pela masculinidade. Seus personagens são homens habitantes de um estranho e violento faroeste tupiniquim. Quem de nós ousaria dizer que a autora não poderia fazer desta forma? Não poderia produzir uma das análises mais certeiras deste país-grotão que a despeito de suas metrópoles segue com pensamentos primitivos e arcaicos?

10 – O Quinze, de Rachel de Queiroz: Um clássico da literatura brasileira e que mais uma vez utilizaremos para questionar as acepções radicais de lugar de fala. Tudo bem que a protagonista do romance possa evocar alter ego da autora, sua boa formação, erudição, cultura… mas o romance não é em si sobre a protagonista, Conceição é a ferramenta pela qual se abrem as denúncias sociais do drama da grande seca, mais do que isso do desleixo  do Estado, os campos de concentração e morte de miseráveis. O Quinze é uma narrativa sobre os retirantes, sobre a miséria e as misérias humanas. E é excepcional e não possui demérito algum observar, na lógica da discussão, que sua autora não ocupava o lugar de fala dos retirantes.

*Este post por sua lógica possui simplificações e generalizações, pois sabemos que o debate está quente e demanda debates e muitos debates. Mas está aqui como elemento provocador. Fique à vontade para respondê-lo. 

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