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10 Perguntas para a escritora Rosângela Vieira Rocha

Fonte http://www.listasliterarias.com/2019/09/10-perguntas-para-escritora-rosangela.html

O Blog Listas Literárias entrevistou a escritora Rosângela Vieira Rocha, autora do recente Nenhum espelho reflete seu rosto. Nessa conversa, questões sobre o romance, sobre literatura e a carreira da autora, confira:
LL: 1 – Nenhum espelho reflete seu rosto adentra em espinhoso e crescente drama contemporâneo, o estelionato sentimental. O que a levou a tratar essa temática através da literatura?
R.V.R.: É importante esclarecer – sou advogada também – em que consiste o tipo penal denominado estelionato, que ocorre na hipótese em que alguém induz uma pessoa a falsa concepção de algo, com o simples intuito de obter vantagem ILÍCITA para si ou para outrem, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício ou ardil, ou qualquer outro meio fraudulento (art. 171 do CP). Por extensão, hoje se fala em “estelionato sentimental ou afetivo”, denominação muito divulgada pela mídia a partir de uma sentença de um juiz de Brasília, da 7ª Vara Cível, que determinou que a parte demandada indenizasse a outra, devolvendo-lhe o valor de um empréstimo feito com a promessa de pagamento, que não houve. Esse caso teve grande visibilidade, por ser a demandante uma empresária que processou o ex-namorado. Isso ocorreu na área cível e não na criminal. Há outros casos, também, mas existem controvérsias em torno do tema, e alguns juristas apontaram que, no caso da empresária brasiliense, houve abuso de direito de ajuda mútua, já que apenas uma das partes contribuiu em proveito da outra e não em proveito do relacionamento, como seria de se esperar. Estes juristas consideraram que não foi estelionato. O tema é complexo, além de longo, e não me parece adequado aprofundar essa discussão aqui, repleta de filigranas jurídicas. A história contada em “Nenhum espelho reflete seu rosto” não se enquadra no que atualmente se conhece, ainda que informalmente, como “estelionato sentimental, afetivo ou amoroso”. Ivan Hernández, o personagem que poderíamos chamar de vilão do romance, não inicia relação alguma apenas com o objetivo de obter vantagem material. Quem faz isso é o golpista comum, o estelionatário. No caso de Hernández, é algo muito mais complexo e sutil. O tipo de proveito que ele almeja é de outra natureza. Justamente por intuir isso, a personagem Helen envereda pela pesquisa na área da psicanálise, quando descobre que Ivan não a ama. Um golpista está interessado em vantagens materiais – dinheiro, carros, imóveis. Quanto mais vultosos os bens de que dispõe a sua “presa”, mais interessante ela se torna, pois o céu é o limite. Um narcisista perverso – como Helen o define, após longa pesquisa – tira da sua vítima todas as vantagens possíveis, especialmente de natureza emocional. Narcisistas perversos querem tudo que o outro tem: dinheiro (se houver, pois também se relacionam com pessoas sem recursos, o que demonstra que a motivação não se prende a bens materiais), emoções, afeto, sexo, admiração. O objetivo principal é o poder, é ter poder sobre o outro, fazendo-o de marionete. Para obter esse poder, utilizam estratégias, táticas e métodos para os quais têm muita aptidão, pois são manipuladores extremamente hábeis e sofisticados, além de muito inteligentes. Estabelecem padrões de comportamento e os seguem durante a vida inteira, não se renovam, como pessoas. Seguem um script, como atores de teatro. Quanto à segunda parte da pergunta, penso que a literatura, embora não tenha finalidade, já que vale por si mesma, pode ser engajada, sem ser panfletária. Sua existência não depende de engajamento, é claro, mas ela pode contribuir na compreensão e divulgação de uma questão relevante, por exemplo. Temas como esse fazem parte da pauta feminista – há narcisistas perversos em todos os gêneros, mas de acordo com pesquisas o número maior é no masculino – e eu me considero feminista. Há que se ressaltar, também, que as ações dos homens narcisistas são aprovadas e até mesmo facilitadas pela sociedade, em virtude do machismo vigente. Em contrapartida, a criação que as mulheres têm recebido através dos séculos – a crença no príncipe encantado que vai salvá-las e cuidar delas para sempre – é outro fator que as “prepara” para o desempenho do papel de vítimas. Uma literatura que se quer contemporânea pode tratar, com êxito, de questões atuais, sem que isso diminua o seu valor.
LL: 2 – Aliás, em nossa avaliação discutimos acerca das teses do livro, que acabam observando mais uma possível questão clínica que criminal. O quanto de criminoso há em Ivan e o quanto de alguém com transtornos psiquiátricos? A bem da verdade, há concordância entre autora e narradora? Até que ponto as tentativas de justificação clínica por parte de Helen se devem ao trauma?
R.V.R.: Parece-me que a pergunta está parcialmente respondida na anterior. Helen não pretende, em nenhum momento, justificar o comportamento de Ivan. O que ela quer é descobrir a verdade, para compreender o que ocorreu de fato e dar um “fecho” à história, dentro de si mesma, e poder tocar a própria vida. Seu interesse é conhecer os detalhes, ela quer saber de si, e pesquisa sobre Ivan para se aprofundar também no autoconhecimento. Narcisistas perversos podem, sim, cometer crimes, mas dificilmente são apanhados. É importante frisar que não são criminosos comuns, a maioria talvez nem cometa crimes. São, sim, seres amorais e imorais, aéticos, não têm limites em relação ao outro, pois o outro não tem a mínima importância para eles. Agem no limite do proibido/permitido pelas leis e gostam disso, obtêm adrenalina no seu comportamento de risco. O grau de empatia é zero, o lugar do outro é algo que não conhecem, não fazem a mínima ideia do que seja, emocionalmente falando (intelectualmente, sabem, sim). Mas eles conseguem avaliar – e o fazem muito bem – os riscos que correm quando cometem suas “más ações”, do ponto de vista jurídico. São o que usualmente chamamos de “más pessoas”. O narcisismo não é um transtorno psiquiátrico, é da área da psicanálise. Não existe medicação para narcisistas e nem cura, segundo importantes estudiosos do tema. Seria uma maneira de olhar o mundo, distorcida, decerto, e por isso é utilizado o termo “perverso” (ao contrário, ao revés). Como creem que o problema sempre está no outro, pois se acham perfeitos, raramente procuram tratamento. Quando o fazem, é por insistência de alguém, ou para aprender a manipular melhor, mas participam de uma ou duas sessões e nunca mais retornam. Eles não querem mudar e estão satisfeitos com o que são. Quanto a mim, nunca pretendi escrever um romance policial, tenho pouco interesse pelo gênero. Li, no máximo, quatro ou cinco policiais durante a vida. Não conheço as técnicas narrativas utilizadas, nem os famosos “ganchos”. Não me atrai desvendar a autoria de crimes. Se Ivan Hernández fosse apenas um “criminoso”, jamais escreveria sobre ele. Já a psicanálise me parece fascinante, é um universo que desperta a minha atenção, me encanta.
LL: 3 – Falando em trauma, o livro chama atenção para o problema, às vezes nem sempre aparente, pois é silencioso. O quão profunda e dramática pensa que pode se tornar uma relação destas? Podemos comparar os danos dessa violência psicológica com os da violência física, não?
R.V.R.: Sim, o problema é difícil de ser visto. Conheci mulheres que viveram com narcisistas durante muitos anos, décadas até, sem entender a dinâmica do relacionamento. Como eles se preocupam demasiadamente com a autoimagem, tratam muito bem o pessoal que os rodeia, como vizinhos, empregados, porteiros, atendentes em geral. Fazem favores, oferecem seus préstimos e são geralmente considerados encantadores. Seduzem todo mundo. Quando um dos componentes do casal começa a entender quem é o outro de verdade – depois de muita hesitação, culpa e luta interior – ele tenta conversar sobre isso com familiares e amigos comuns, mas imediatamente é refutado ou desacreditado. A manipulação narcisista é extremamente benfeita e requintada. A ambiguidade com que eles agem, no sistema “morde e sopra”, põe o outro muito confuso. Quanto à violência, sabe-se que a violência física em geral se desenvolve numa escala crescente, ou seja, primeiro vêm os abusos psicológicos e morais, até o primeiro tapa ou bofetão. Narcisistas dificilmente partem para a violência física, não “sujam” as mãos porque são covardes demais e têm medo da polícia e da Justiça. Em contrapartida, a violência que promovem é de uma crueldade sem limites, destinada a enlouquecer o outro, a “quebrá-lo” psicologicamente, a deixá-lo sem chão, a destruir sua autoconfiança e autoestima. Não dá para medir a toxidade de tipos de violência, mas acredito que todas as formas são igualmente perniciosas, da mais aparente e óbvia à mais oculta e sofisticada.
LL: 4 – Embora não seja o foco do romance, a obra demonstra como a tecnologia facilitou a vida de caras como Ivan. Como você observa isso?
R.V.R.: Os novos aparatos tecnológicos não têm responsabilidade na criação de narcisistas perversos, é claro. Eles já existiam, existem desde sempre. Mas o fato de uma pessoa poder ter dezenas de perfis em vários sites diferentes amplia o seu raio de atuação, digamos. A internet é ainda uma espécie de “terra de ninguém”, pelo menos até que exista, em países como o nosso, uma legislação e uma fiscalização capazes de dar conta dos comportamentos nas redes sociais, por exemplo. No momento, é como se o ambiente virtual fosse uma grande “floresta” para predadores sociais de todo gênero.
LL: 5 – Além disso, a tecnologia parece avançar muito numa era de intensa solidão. A solidão desta era não seria também uma porta a facilitar o comportamento desses aproveitadores?
R.V.R.: Discute-se muito sobre a “solidão atual”. No meu entendimento, ela sempre esteve presente, sempre existiu, sob nomes distintos e distintas cores. No fundo, somos indivisivelmente sós, como escreveu Rilke.
LL: 6 – Ao mesmo tempo que sua narrativa trata dessa modernidade das relações e suas virtualidades, há nela ares intimistas de uma narrativa de um Brasil ainda profundo, interiorano. Como observa isto?
R.V.R.: Nenhum espelho reflete seu rosto não é um romance sobre relações virtuais. O relacionamento de Helen e Ivan se inicia numa rede social, mas depois há encontros reais. Não há na história nenhum tipo de pretensão à análise das chamadas “relações líquidas”. Não sei se respondo satisfatoriamente à sua pergunta, mas eu, a autora, nasci no chamado Brasil profundo – no interior de Minas Gerais, zona da Mata, divisa com o Vale do Rio Doce, e vim para Brasília com catorze anos de idade. Pode ser que isso influencie a minha literatura. Costumo dizer que a infância é a fase mais importante da vida. A minha foi numa cidade muito pequena, Inhapim, longe dos grandes centros.
LL: 7 – Agora, saindo um pouco do romance, você possui uma bela jornada na carreira enquanto escritora. Quais os grandes desafios de quem escreve literatura nesse país?
R.V.R.: Os principais desafios continuam os mesmos, a meu ver: a divulgação e sobretudo a distribuição da produção literária. Atualmente é muito mais fácil publicar do que nos anos oitenta e noventa, por exemplo. Não havia essa proliferação de editoras independentes e muito menos a produção independente, feita pelo próprio autor. Dificilmente alguém se arriscava. Mas a grande dificuldade continua a ser fazer com que o livro chegue ao leitor. Não adianta nada ter caixas de livros empilhadas dentro de um quarto. Livros têm de circular, literatura tem de ser lida. Isso faz com o que o autor tenha um trabalho desmedido, que, em princípio, não lhe caberia, pelo menos sozinho: comercializar os seus livros, divulgá-los, vendê-los um a um, em certos casos. É o que estou fazendo com Nenhum espelho reflete seu rosto. Tem dado bons resultados, mas é um trabalho de formiguinha, motivado pela paixão. Só quem ama a literatura de maneira quase obcecada se anima a despender tanta energia por uma causa.
LL: 8 – Além disso, o que pensa da produção literária nacional? Tem acompanhado? Quais as surpresas nesse sentido? Como observa o cenário literário hoje?
R.V.R.: Sim, tenho acompanhado, na medida do possível. O que posso dizer é que tem muita gente escrevendo no Brasil, atualmente. E muitos escritores/escritoras escrevendo muito bem, o que é extremamente auspicioso para todos. Brasileiros ganharam recentemente prêmios internacionais importantes, como o Leya, cujo vencedor foi Itamar Vieira Júnior, com o romance “Torto arado”, e o Casa de las Americas, que Deborah Dornellas ganhou, também com um romance, “Por cima do mar”. Ambos são meus amigos, Itamar é baiano (prefaciei o livro anterior dele, de contos, “A oração do carrasco”) e Deborah veio para Brasília quase bebê. Há literatura de muito boa qualidade sendo feita no país, por homens e mulheres. Gostaria de mencionar a produção brasileira de literatura de autoria feminina, que cresceu significativamente nos últimos anos. Faço parte do movimento feminista Mulherio das Letras, que existe praticamente em todas as regiões do país. Desde 2017 realizamos encontros nacionais anuais e já saíram várias coletâneas de participantes do Mulherio, além do aumento das produções individuais e alguns eventos. Esse movimento é uma das iniciativas mais relevantes dos últimos anos no cenário literário nacional, pois é um ambiente de discussões de alto nível de questões específicas relativas à literatura de autoria feminina. Todas as mulheres que fazem parte da cadeia do livro podem participar: editoras, livreiras, divulgadoras, produtoras, agentes literárias, tradutoras, revisoras, além das escritoras, é claro.
LL: 9 – E como conciliar a carreira acadêmica e produtiva e qualitativa produção literária?
R.V.R.: Eu me aposentei como professora do Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília – UnB. Tenho mais tempo agora para me dedicar à literatura. Mas, mesmo quando estava trabalhando, com exceção do período em que morei em Salvador, onde não me sobrava tempo para nada, pois resolvi fazer a segunda graduação (em Direito), além de dar aulas de Comunicação na UCSAL – Universidade Católica do Salvador e na Universidade Federal da Bahia – UFBA – sempre consegui escrever um pouquinho de ficção, em horas “roubadas”. Passava períodos sem escrever, mas sempre à espera do tempo em que poderia me dedicar exclusivamente à literatura. Felizmente, esse tempo chegou.
LL: 10 – Para encerrar, percebemos em Nenhum espelho reflete seu rosto diferentes cuidados e compromissos estéticos, isso está relacionado com sua visão do que é literatura?
R.V.R.: Para escrever, é necessário ser um grande leitor, uma grande leitora. Ler e escrever são atividades complementares. Mesmo quando o escritor não conhece teoria literária, ele vai assimilando inconscientemente, ao longo da vida, muitos aspectos da teoria e especialmente das técnicas literárias. Quando vou contar uma história, o que sempre me pergunto, se já tenho o enredo formado, é de que maneira vou contá-la, o que equivale a dizer que estratégias e táticas utilizar naquela narrativa específica. Cada história pede um jeito de contar diferente, uma estrutura diferente. É claro que muito dessa escolha se dá inconscientemente, mas são necessárias decisões tanto iniciais quanto durante o processo da escrita em seu conjunto. O compromisso da literatura não é com a realidade, é com a verossimilhança. Por isso, sempre me faço a pergunta inicial: se contada dessa maneira, essa história é uma “verdade” aceitável ou possível? O leitor ficará convencido do que narro? Quanto à linguagem utilizada, creio que tem a ver com a região, a personalidade do escritor, sua formação, seu nível cultural, suas preferências literárias, até mesmo com a sua faixa etária. E com as personagens, é claro. Sempre lecionei disciplinas ligadas à produção de textos. E dizia aos meus alunos algo em que acredito piamente: o mais importante, para um escritor, é a sinceridade. Se sou uma professora universitária de sessenta anos, por exemplo, dificilmente escreverei como uma mocinha de quinze, que vive na área rural. Se tentar fazer isso, o leitor vai se sentir enganado, pois o texto não lhe parecerá verdadeiro. Não é algo impossível, há escritores que conseguem, mas são uma exceção à regra. Posso construir uma personagem como a acima descrita, não é disso que estou falando. O que não posso é fingir ser uma escritora que não sou, tentar imitar alguém, ter uma identidade que não me pertence. A linguagem das personagens não é a da escritora, mas passa necessariamente pelo “filtro” da escritora. E esse filtro precisa ser genuíno, verdadeiro. Encontrar a própria voz é fundamental para o escritor.

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