Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/05/10-perguntas-para-o-professor-joao-luis.html
6 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Chegamos a duas questões que o senhor aborda e gostaria que discutíssemos um pouco mais. Uma é o leitor; a outra, nossa produção contemporânea, cuja pergunta faço na sequência. Antes acho importante essa discussão sobre o trazer do leitor para o jogo, caso especialmente discutido por nomes da estética da Recepção como Iser e Jauss. Outros pensadores recentes, já numa perspectiva mais pedagógica, como Langlade e Rouxel tratam dos leitores, de suas subjetividades, de suas experiências. Enfim, o leitor ganhou experiência e relevância, mas quem são esses leitores? Especialmente falando de Brasil. O senhor já tratou de alguns desafios da leitura ao longo da entrevista, muitos relacionados aos leitores. Temos realidades distintas e multifacetadas, não, quando pensamos em leitores brasileiros?
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: O problema que se destaca a partir do seu questionamento é a relação entre leitura e ensino, entre leitor e formação. A maior parte dos referenciais teóricos analisam a perspectiva da leitura a partir de leitores ideais – como é o caso da Estética da Recepção. O “horizonte de expectativa” do leitor é mais variado do que as teorias linguísticas e literárias são capazes de abarcar, visto que se apresentam, na maioria das vezes como diagnósticos de situações cujo turbilhão das mudanças históricas nos/as impulsiona rapidamente para novas realidades. Antes de avançar um pouco mais, quero enfatizar como ocorrem mudanças significativas em um curto espaço de tempo. Durante a minha formação na educação básica havia um distanciamento muito maior entre o que o professor ensinava – não necessariamente lia – e aquilo que os alunos liam. Tanto que até recentemente era comum que quando o professor perguntava o que os alunos estavam lendo a resposta era “nada”, pois esses leitores não percebiam que aquilo que liam poderia ser considerado “a” leitura. Quando uma nova geração de profissionais começa a levar para dentro da sala de aula vários gêneros, obras e referências, ocorre uma transformação positiva. O professor conhece – e também é um leitor – (d)as obras que os alunos leem, constituindo um cenário profícuo para a discussão e o aprofundamento de análises e reflexões. Para a minha geração era o momento ideal, mas não é isso que percebo de forma ampla na nossa formação de leitores atualmente: a leitura está funcionando antes como demarcador de território, ou seja, a leitura daquele grupo une experiências e ideias que não devem sair daquela “bolha” – uma postura provavelmente relacionada com as redes sociais em seu aspecto negativo de isolamento de opiniões contrárias – e se alguém considerado estranho àquele grupo (notadamente o professor) apresenta uma leitura a partir das obras em comum, pode acontecer daquele grupo trocar de obras para não ter que debater/discutir com quem não é bem-vindo ao clube. Esse aspecto mantém o distanciamento que havia anteriormente, trazendo novos problemas para o campo da formação, problemas que são novos e que não estavam – e não sei se estão – na agenda da educação. Quando você comenta que o leitor ganhou experiência eu acho que ganhou vivência de leitura, pois está lendo mais, tem maior acesso a obras em um universo novo e inexplorado, mas não é possível determinar que se constitui em experiência. Aqui podemos argumentar que quantidade não é qualidade: não é porque lemos mais que acumulamos conhecimento, é necessário fazer relações a partir daquilo que lemos. E é exatamente esse ponto que me preocupa e que venho argumentando de forma reiterada. Uma teoria importante que você traz para a discussão é a de Wolfgang Iser. O jogo do texto apresenta o campo no qual ocorre esse embate que é ao mesmo tempo prazeroso (todo jogo carrega um elemento lúdico e de realização), instigante (pelos desafios impostos), disciplinador (porque apresenta regras a serem seguidas) e formativo (pois sempre agrega algo além do próprio jogo), entre várias outras possibilidades. O problema é que esta teoria que utilizo como exemplo não é uma teoria pedagógica e se for aplicada de forma direta, sem as mediações necessárias, acabará por incorrer na questão do leitor ideal, distanciada do leitor real. A área da linguagem padece muito dessas relações e acaba, em muitas situações, desdenhando do saber pedagógico de um lado e sucumbindo à sua simplificação pelo viés do prazer, do lúdico, quando somos exigidos a pensar a formação de leitores. Além disso, como se não bastassem todos esses problemas, temos ainda um extremamente difícil: a realidade brasileira. Tudo o que comentei até o momento evidencia um hiato teórico e um déficit formativo que é ampliado pelos problemas de financiamento da educação – sempre vista como despesa e não como investimento – e como isso contribui para a absoluta falta de estrutura para o ensino. Some-se a isso as dimensões do país e as diversas realidades culturais. Mesmo se o Brasil fosse um país menos desigual, que tivesse um – pelo menos – adequado financiamento e investimento na área da educação, ainda assim teríamos desafios imensos para pensar a formação de leitores, entender as diversas dinâmicas de cada região e as variantes percebidas dentro de cada uma dessas regiões. A leitura literária é, antes de mais nada, uma reflexão sobre o outro, sobre esse outro em um outro tempo, em outra realidade. Estarmos abertos para entender essas diferenças não é suficiente – é apenas o ponto de partida necessário -, precisamos desenvolver uma capacidade de leitura [aqui reitero a importância da leitura como um valor importantíssimo a ponto de ser pensada também como uma forma de arte] capaz de devolver para a sociedade perspectivas sobre a construção de uma cidadania que reoriente os valores democráticos na direção do bem comum e da inclusão desse(s) outro(s). Penso que há uma preocupação maior no nosso ensino em simplificar o complexo do que em preparar para a complexidade. Enquanto não houver uma mudança de perspectiva, mesmo que tenhamos mais recursos, permaneceremos vulneráveis aos problemas de formação que nos desafiam. Quando você apresenta alguns teóricos e teorias mais recentes sobre a leitura – também poderia colocar autores já com uma trajetória consolidada, como Chartier e Manguel – se estabelece um importante espaço de discussão. O problema que percebo e que tenho procurado refletir a partir das questões formuladas é a formação do leitor – de sujeitos-leitores – que acaba sendo tangenciada por muitos fatores que não podem ser organizados em uma única linha de pensamento. Existem processos que se aproximam e se distanciam em termos geopolíticos e históricos e que tentamos contornar e, às vezes, até mesmo ignorar para atingir os objetivos mais importantes dessa formação. Não podemos sucumbir a essas limitações – algumas delas mencionadas e outras a serem inseridas nessas discussões -, mas também não é possível negligenciá-las a ponto de pensar somente no nível de subjetividades distantes desses processos “reais”, ainda que essa realidade do saber possa ser fruto da imaginação e da percepção subjetiva. A arte, nesse sentido, exige esse diálogo intersubjetivo entre os sujeitos, colocando-os em um estado de vigília necessário para aprender com essas experiências. No que diz respeito à literatura temos um problema a mais: o veículo do livro, da palavra impressa. Mesmo que consideremos um conceito mais amplo de literatura [aqui já mencionei a relação com o cinema e poderia acrescentar a própria tradição da cultura oral, das histórias e das lendas passadas de geração em geração], precisamos pensar que o texto escrito agrega uma necessidade de entendimento inicial, uma capacidade de realizarmos uma paráfrase para a nossa percepção do lido. Para que isso ocorra é necessário uma habilidade: a da leitura. Essa é uma habilidade que as outras artes não exigem ou exigem muito menos. Não é necessário ser pintor ou escultor para entender suas expressões artísticas, assim como não é necessário saber ler para assistir um filme. Com a literatura isso não ocorre. Precisamos de uma habilidade que antecede a arte, uma habilidade que é possível ser desenvolvida por qualquer pessoa e como vivemos em uma era em que o acesso à leitura – a uma alfabetização mínima, por assim dizer – é comum, parece que a leitura literária também segue o mesmo princípio. Esse é um equívoco muito frequente, visto que utilizamos os mesmos mecanismos iniciais – decodificar o código escrito -, mas que se transformam e ampliam as exigências sobre o leitor quando deparado com o texto literário. A percepção dessa problemática leva tanto a trabalhos excepcionais voltados para essa relação do leitor com a obra literária quanto a clichês e reordenamentos da literatura a padrões supostamente preexistentes. Os trabalhos formativos mais relevantes atuam nesse processo intersubjetivo, enquanto que alguns graves problemas podem ser vistos a partir de uma subjetividade de mão única, ou seja, abordar as subjetividades e as experiências dos alunos sem, contudo, os próprios formadores colocarem-se dentro dessa reconfiguração das experiências.
7 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Como disse antes, além do leitor, gostaria de lhe questionar sobre a produção, afinal, se conversamos aqui levando em muita consideração o leitor, a outra parte é essencial ao sistema literário, a produção. Você lidera um projeto de pesquisa sobre a série Amores Expressos que trata basicamente de literatura nacional contemporânea [uma série peculiar quanto a “nacionalidade” é bem verdade e que talvez deixemos para falar na sequência]. Tendo a literatura contemporânea nacional em mente e tudo que já falamos desses desafios relacionados aos leitores, como anda a literatura brasileira? Temos boas experiências pós anos 80? Os escritores do hoje estão conseguindo cumprir os desafios que a literatura lhes impõe?
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: A pergunta é muito fácil de responder. Sim, temos obras excepcionais – minha avaliação é tanto como leitor comum quanto a partir de leituras e análises mais apuradas – e autores importantes no cenário brasileiro e com inserção reconhecimento internacionais. Quando você menciona a partir de década de 1980 agregamos nomes que hoje já são clássicos e que não há maiores questionamentos sobre suas produções. Desde Lygia Fagundes Telles, passando por Caio Fernando Abreu, Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Moacyr Scliar, Sérgio Sant’Anna… [a lista seria enorme] temos escritores e escritoras fantástic@s. Há um questionamento mais recente – sempre é mais difícil reconhecer a arte no seu próprio tempo – que se ampara nesses e em nomes de períodos anteriores e acho que é nesse ponto que sua pergunta pode ser aprofundada no sentido de colaborar com algum tipo de indicação de leitura. Não sei se os escritores estão cumprindo os desafios impostos – se é que existem. Gosto da definição de Otto Maria Carpeaux de que a “arte alcança sempre a finalidade que não tem”, por isso que os desafios que os escritores se impõem acabam alcançando outros objetivos, outras demandas que nem eles são capazes de perceber, necessitando que seus leitores agreguem reflexões – mais uma vez a importância de leitores capazes de darem os novos sentidos se faz necessária. O projeto de pesquisa Amores Expressos – Identidades Ocultas surgiu de um interesse em articular várias possibilidades de leitura a partir de obras literárias – começando pelo próprio projeto editorial da Companhia das Letras. A ampliação de possibilidades pode ser percebida na página do Instagram que é mantida para divulgar as ações do projeto. Retomando: os escritores estão cumprindo o seu papel – o juízo de valor é dado pelos leitores [tanto os ideais quanto os reais] no que diz respeito à qualidade das suas produções. Além das obras da série Amores Expressos e de outras que foram analisadas e trabalhadas a partir das relações produzidas no projeto de pesquisa desenvolvido na UFPel, também posso mencionar o trabalho recente que estou tentando desempenhar a partir de duas obras lançadas no ano de 2019: Todos os Santos, de Adriana Lisboa, e Mulheres empilhadas, de Patrícia Melo. A autoria feminina é um dado importante e as questões que as narrativas implicam permitem novas experiências para o leitor. Uma vez mais: do meu ponto de vista os escritores estão cumprindo seus papéis quando não se preocupam em cumprir um determinado papel, apenas escrevendo e procurando ampliar o diálogo intersubjetivo que a literatura possibilita. A literatura brasileira vai bem, o problema continua sendo o que interfere no acesso à leitura e também nas desigualdades que afetam a divulgação de obras de autores fora do circuito das editoras. Estamos falando de escritores que conseguem publicar – e estes sofrem com a falta de leitores, mesmo suas obras apresentando qualidade -, enquanto que apenas imaginamos aqueles que não conseguem chegar ao nosso [ainda muito pequeno] público leitor.
8 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Nos encaminhamos para o fecho de nossa conversa e até aqui, creio, abordamos questões relevantes no que se refere a leitores e autores dentro do sistema literário. Também conversamos sobre literatura, educação e academia. Talvez já seja o momento de falarmos da crítica, eixo que também sofreu muitas transformações nos últimos anos, não? Como observa a crítica literária neste cenário que conversamos?
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Utilizei uma expressão que procurava dar a dimensão do distanciamento da crítica do seu próprio objeto de estudo e reflexão: o corpo da crítica precisa refletir sobre o espírito da arte. Ainda persiste uma visão de que a literatura está no campo do espírito, implicando em um viés que aborda sua produção como algo intangível e atemporal – sendo, também, acrítico. Assim, mesmo pensando que a literatura tenha esse caráter subjetivo – que a coloca simbolicamente nessa condição de bens incompressíveis – não podemos limitá-la a essa perspectiva para a leitura crítica que deve dotar a obra literária de um corpo, fazer com que esse espírito corresponda ao seu tempo histórico e reflita as contradições do seu tempo. A visão de Theodor Adorno é ainda muito atual. Em Crítica cultural e sociedade [primeiro capítulo do livro Prismas], o pensador alerta para o fato de que o crítico da cultura não consegue esconder a arrogância de que possui essa cultura de que fala, apresentando o problema de um distanciamento da compreensão da própria cultura, das próprias obras. Ao entendermos que existe um posicionamento político do crítico e que ele deve tomar os cuidados – não negar esse posicionamento, visto que esses elementos também o constituem – para entender como essas questões se relacionam no processo de construção da crítica, podemos, então, entender melhor as palavras de Adorno: “ao desobedecer, obedece”. Ocorre uma contradição no pensamento crítico que acaba por legitimar as estruturas ao questionar as produções culturais. Ao considerar que a literatura é apenas um espírito sem corpo, uma produção que está acima do próprio humano, a crítica sustenta aquilo que deveria questionar, ou seja, não estabelece novas possibilidades de pensar, não dialoga com a diversidade e com os problemas em sua constante renovação. Minha visão é de que essa perspectiva permanece e exerce ainda uma grande influência nos leitores mais especializados. Tal situação cria um espaço de ruptura com aqueles que valorizam as obras a partir de outros paradigmas, fazendo com que não haja uma troca, um diálogo entre as leituras e os (as) leitores(as). A ruptura acaba por sustentar um vazio formativo, um hiato no qual as obras literárias não são lidas e discutidas dentro de uma lógica da inclusão e do questionamento a partir de argumentos e também de impressões e opiniões (sendo as opiniões caracterizadas como elementos de partida para a construção dos argumentos e não como um argumento por si mesmas). É o que podemos perceber nas discussões sobre o cânone, em que ocorre a defesa de uma espécie de “patrimônio cultural” que afeta diretamente a formação de sujeitos-leitores e também “obedece” aos modelos definidos de sociedade com uma aura de questionamento. Existem muitos trabalhos consistentes no cenário da crítica contemporânea brasileira, assim como podemos acessar um histórico importante da crítica e da historiografia literária no Brasil, mas o problema é, novamente: na minha opinião, esse distanciamento entre o leitor real e o leitor ideal. O leitor “ideal” – que pode ser visto como o crítico ou o professor – deveria cada vez mais se propor a esse diálogo, enquanto que o leitor “real” precisa estar aberto às novas visões ao mesmo tempo que também coloca em discussão os seus pontos de vista. O hiato formativo que evidenciei acirra e compromete esse diálogo e faz com que espírito e corpo se distanciem cada vez mais. A diminuição desse espaço que separa os leitores não é de responsabilidade absoluta nem de um e nem de outro, mas sim de uma conjuntura maior que já discutimos e que atua no cenário da educação brasileira marcado pelos inúmeros problemas materiais e de estrutura. Quando ocorre uma precariedade das condições formativas, aumenta o espaço entre os leitores e afeta a construção de pontes que poderiam aproximar nossas leituras e nossos mundos. A crítica é importante para apresentar possibilidades de transformação, mesmo que ela não se constitua como tal. Considerando essa abordagem, o pensamento crítico dialoga com a literatura e não há literatura sem leitores, por isso a crítica também deve dialogar com os leitores – mas um diálogo a partir da obra, sem cair no impressionismo e no caráter empírico que, via de regra, limita ao invés de ampliar os horizontes e as perspectivas críticas.
9 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Não podíamos deixar de abordar em nossa conversa algo muito caro a seus trabalhos, a pesquisa sobre o autoritarismo. O senhor coordena o grupo de pesquisa Ícaro, que dentre outras coisas, pesquisa especialmente o autoritarismo a partir da teoria crítica da sociedade. Hoje parece mais claro a uma parcela maior da sociedade brasileira os riscos de regressos autoritários. Bem verdade também que estes riscos são ambidestros, e nos dois polos da política; como, inclusive já vimos nesta conversa, o diálogo parece cada vez mais improvável. A literatura em tempos autoritários sofre um bocado. Mas é também a literatura uma das melhores formas e forças que temos para resistir ao autoritarismo, não?
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Antes de abordarmos o posicionamento do crítico perante as obras literárias considero necessário evidenciar que existe arte do lado da barbárie. A arte, por si só, como experiência estética e subjetiva não garante uma proteção contra o horror, pois também pode ser utilizada como objeto de opressão, como fator de valorização de valores autoritários e excludentes. O que a literatura nos apresenta é uma reflexão, um testemunho que dialoga com outras perspectivas, ou seja, um indivíduo que se apresenta muitas vezes de forma contrária ao que defenderia no cenário político de que participa. O que poderia ser visto como contradição seria a própria condição humana e na direção dessa compreensão é que a leitura deveria trilhar. Outro aspecto é a importância que a sociedade atribui aos textos literários. Uma supervalorização desse “poder” transformador faz com que não percebamos que a arte não realiza nada, ela apenas indaga e questiona e legitima as condições encontradas pelo autor em um determinado contexto histórico e social. Arthur Danto já discorreu sobre esse Descredenciamento filosófico da arte e de como a vida continua, como a natureza prevalece, assim como o rio segue seu curso. Não é a poesia que bloqueia as águas, apenas pode motivar e/ou legitimar a construção de uma barragem, não sendo capaz de romper essa mesma barreira. Isso não quer dizer que a ideologia que permeia as obras não seja poderosa ou não interfira no percurso humano, somente não o faz diretamente, dependo das pessoas e de suas escolhas. Nesse ponto é que um leitor crítico se insere: articulando possibilidades de reflexão e escolhendo um “partido” (obviamente não trato aqui de política partidária, mas do posicionamento necessário na sociedade, mesmo que seja resistir à ela própria) com base em suas convicções que não podem ser confundidas com certezas. A dúvida perante o mundo é uma constante e não impede que algumas decisões e posicionamentos sejam adotados. O que adotei deriva da percepção dos Direitos Humanos e da construção de uma Cidadania que não admite posições autoritárias e verdades absolutas, assim como não se abre a questionamentos fáceis que visam apenas desestruturar o conhecimento para dar lugar à barbárie, uma mentalidade que busca quebrar com a lógica do pensar em nome da liberdade de pensamento. Considero ser cada vez mais necessário nos posicionarmos contra esse tipo de pensamento e de ideologia que ignora o ser humano em sua complexidade e não admite a reflexão. Antonio Candido já discutiu que a “nossa cultura naquilo que ela tem frequentemente de mais vivo, de mais fecundo e de mais inspirador, é também uma cultura do contra” [Tempo do contra. In: _____. Textos de intervenção.], por isso que o crítico deve procurar refletir sobre isso nas produções literárias enquanto que se posiciona fora desse espaço como sendo contra aos dogmas e ao que limita as possibilidades de leitura. O único limite deveria ser o próprio texto. Alguns pensam que a interpretação é livre de forma absoluta. Nada mais equivocado, pois em nome dessa liberdade irreal, acabam restringindo e, contraditoriamente, limitando a própria obra. A liberdade é o limite da condição humana e quando não há essa condição de humanidade a liberdade se corrompe e vira opressão. Essa relação entre a produção literária e a sociedade é vital para que o crítico possa transitar entre os textos e os problemas históricos dos quais também faz parte. Quando recupera uma obra clássica ou de outro tempo também está dialogando com o seu presente. Quando reconhece que somos uma soma de passados que ressignifica o momento de sua consciência, acaba por reelaborar também os projetos de sociedade e atuar como um intérprete capaz de compreender melhor os papéis que representamos, não para rasgar o roteiro, mas para inserir algumas anotações, algumas rubricas que o colocam um pouco mais próximo das obras e seus autores. A resistência ao autoritarismo, nessa visão, talvez não ocorra por causa das obras, mas pela relação com elas. Resistir também é resistir à própria obra, dialogando com ela sem se deixar sufocar, entender sem precisar aceitar, enfim, resistir a nós mesmos e às nossas contradições, ao nosso viés autoritário. Essa busca permanente e essa leitura inacabada permitem que vários pesquisadores mantenham contato e dialoguem frequentemente. O Grupo de Pesquisa CNPq ICARO (icaro.ufpel.edu.br) é um dos espaços que articula essas reflexões, mantendo um intercâmbio permanente com outros pesquisadores, instituições e grupos de pesquisa de projeção internacional [destaque ao trabalho em parceria com o GrPEsq CNPq Literatura e Autoritarismo (UFSM), o NEGUE – Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura (UFMG), o LEHViC – Laboratório de Estudos do Horror e da Violência na Cultura (UFMS)] cujo trabalho, dentre outras coisas, resultou no livro O Lugar do Abjeto. Pretendemos, como grupos que dialogam de forma contínua, manter um ponto de inflexão perante as condutas autoritárias para que ao menos a crítica literária não fique atrelada a modelos de opressão e segregação. E, sim, a literatura é uma das melhores formas que temos para resistir à opressão, mas também uma das mais sedutoras que o autoritarismo pode lançar mão para realizar seus objetivos.
10 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Chegando ao desfecho desta bela conversa que, creio, foi capaz de abranger a literatura em suas diversidades e complexidades; e ainda que estejamos vivendo este momento estressante da humanidade, mais uma pandemia e os horrores que este tipo de evento despertam, poderíamos fazer aqui um exercício de análise de tendência. É possível imaginarmos, por exemplo, o que será da literatura em 2050? Para finalizar, deixo livre considerações finais, desde já agradecendo ao tempo dedicado.
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Essa é uma questão muito complexa: prever o futuro da literatura. Podemos apenas acessar o que temos disponível e analisarmos com expectativas otimistas ou pessimistas. Esse otimismo ou pessimismo varia também de público – podendo ser apenas pontos de vista e vinculados à percepção da realidade. Quando eu comentei que somos uma soma de passados que ressignificam o presente, isso também pode ser aplicado para a representação do futuro: em ambos os casos – passado e futuro – quando são imaginados ou recuperados pela criação literária acabam por apresentar a nossa realidade em suas contradições. O presente é a soma de passados e ao mesmo tempo um projeto de futuro. As ideologias que se consolidam como parte da nossa própria identidade são uma espécie de resumo da história humana e de suas comunidades. Uma ideia que circula sobre obras que imaginam o amanhã é a de que acabam representando o seu momento de forma mais sincera, ou seja, enquanto que o olhar para o passado seleciona apenas aquilo que o indivíduo e seu grupo consideram o melhor (sendo o papel do leitor fundamental para ler além dessas escolhas e analisar o testemunho da arte nessa idiossincrasia que integra os seres), o vislumbre do futuro revela o que gostaríamos de ser a partir do que já somos (outro trabalho difícil para um leitor crítico: o de perceber que o melhor que queremos ser carrega situações de conflito e problemas não resolvidos). Mas o conteúdo das produções literárias é uma incógnita, é um vir a ser em que podemos antecipar alguns temas, mas nunca a forma como essas questões serão apresentadas; essa(s) forma(s) irá(ão) nos surpreender mesmo quando não trouxer(em) nada de novo, se constituindo de pastiches ou mesmo de meras cópias do que já temos disponível – nesses casos, é a situação da sociedade, dos seus leitores, que acaba sendo mais significativo para auxiliar a compreensão. Quanto à forma certamente haverá mudanças. Não sei se o objeto livro como o conhecemos irá permanecer; penso que sim e acredito pelo menos em uma variação muito próxima do atual, pois o livro eletrônico poderá avançar tecnologicamente a ponto de reproduzir a forma de leitura que temos com o livro impresso. Além disso, ainda haverá a questão do valor de troca, o acesso ao produto por classes privilegiadas que sempre irão querer ter sua exclusividade. E, em uma sociedade que terá acesso aos textos digitais, o que irá diferenciar: talvez o custo de um livro. Já observamos esse fenômeno na atualidade: temos uma quantidade absurda de obras disponíveis na internet, mas a reedição de um clássico ricamente ilustrado e encadernado, por exemplo, ainda possui compradores, enquanto sites que disponibilizam conteúdo gratuito sequer são acessados – o problema não é a literatura e nem o veículo e nem o conteúdo de suas produções: ainda é o espaço (a ser) ocupado pelos leitores. O único prognóstico que posso fazer a esse respeito é de que haverá cada vez mais leitores, mais pessoas lendo. Se isso representará qualidade ou apenas quantidade depende da visão otimista e pessimista que temos e da que as próximas gerações terão. Não sei se verei o ano de 2050, mas se estiver com saúde certamente ainda estarei lendo um livro impresso… e alguns outros digitais também. Agradeço muito o convite para essa entrevista e sua disponibilidade em dar atenção a essas importantes discussões. Provavelmente não agreguei muito para os leitores desta entrevista, mas ao menos deixei algumas referências que considero relevantes para quem quiser aprofundar o estudo sobre esses temas. E também permaneço à disposição para algum comentário, crítica ou contribuição a partir dessas questões.