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120 anos de cucas fundidas

Fonte http://feedproxy.google.com/~r/lablogatorios/~3/OdFlGoSWC_A/

A photograph of Emil Fischer

Emil Fischer [1852-1919] ficou encafifado ao descobrir uma substância cristalina com três pontos de fusão — um fenômeno que só agora voltou a chamar a atenção.

No fim do século XIX, um cientista alemão descobriu algo que só agora está sendo explicado: uma substância química com três pontos de fusão

Emil Fischer estava estudando a reatividade da fenilhidrazina em 1877 quando, pela primeira vez, sintetizou uma substância chamada acetaldeído fenilhidrazona (APH, na sigla em inglês). Dezenove anos mais tarde, ele descreveu a descoberta de três formas intercambiáveis de APH, que se diferenciavam apenas pelo ponto de fusão, que podia ir de 63 a 65º. C, 80º. C e de 98 a 101º. C. Assim, no finzinho do século XIX, surgiu um mistério que faria os químicos quebrar a cabeça por mais de 100 anos.

Naquela virada de século, os cientistas estavam apenas engatinhando no entendimento e classificação de sólidos cristalinos. No caso da APH, havia divergências quanto ao número de variedades existentes (duas ou três) e do valor exato dos pontos de fusão. Fischer ganharia o Nobel de Química em 1902 — não pela APH, mas pela síntese pioneira de açúcar e purina — e passaria vários anos batendo cabeça com o colega francês M. H. Causse por causa da APH. Sem conseguir explicar o fenômeno, a comunidade científica foi deixando de lado o mistério da substancia com três pontos de fusão: artigos científicos sobre a APH sumiram depois de 1913.

A investigação da APH só viria a ser retomada a partir de 2008 por Terry Threlfall — um bom exemplo de uma pesquisa bela-adormecida. Após se aposentar da indústria farmacêutica, Threlfall passou a atuar como pesquisador-visitante sênior da Universidade de Southampton em 1999. O cientista aposentado descobriu os artigos de Fischer sobre a APH ao folhear antigas revistas científicas alemãs. Intrigado, Threlfall buscou ajuda do laboratório de Simon Coles (também de Southampton) para sintetizar a substância enigmática. Seguindo protocolos dos séculos XIX e XX, o grupo percebeu que havia duas formas de recristalizar a APH: 1) a partir de uma mistura de água e etanol com traços de produtos alcalinos, gera-se a versão com alto ponto de fusão; 2) usando traços de ácido em vez de bases, obtém-se a forma com baixo ponto de fusão.

An image showing Simon Coles and Terry Threlfall

Depois de se aposentar, Terry Threfall (dir.) redescobriu o enigma da APH. O laboratório de Simon Coles (esq.) ajudou-o a resolver esse secular quebra-cabeça químico. [Imagem: Universidade de Southampton]

Até aí, nenhuma novidade. A diferença é que Threlfall tem acesso a tecnologias que seriam impensáveis para Fischer no século XIX. Graças a isso, ele e seus colegas puderam submeter as diferentes formas de APH a exames sofisticados, como cristalografia por raios-X, NMR de estado sólido (um tipo especial de ressonância magnética) e espectroscopia infravermelha. O resultado parecia impossível: as duas variantes de APH eram isômeros de ligação dupla tipo Z. Com base nas leis da termodinâmica, essa identidade deveria ser impossível.

Problemas desse tipo nem sempre rendem artigos científicos, mas podem circular de outra forma. Frustrado, Threlfall aproveitou uma conferência para desabafar sobre o assunto com Manuel Minas da Piedade (Universidade de Lisboa). Piedade teve piedade ficou interessado na questão e resolveu formar sua própria equipe em Lisboa. A colaboração deu frutos. Em 2012, os grupos luso-britânicos tiveram a ideia de as propriedades das diferentes formas de APH durante a formação dessas substâncias.

A ressonância magnética feita durante a fusão mostrou que, embora as variedades sólidas fossem idênticas, as formas derretidas eram distintas. Threlfall e seus colaboradores observaram que, enquanto a forma com alto ponto de fusão continuava a ser um isômero-Z, a outra, de fusão mais baixa, transformava-se num isômero-E. Quando Threlfall apresentou tais resultados em outra conferência, foi contatado por Hugo Meekes, da Universidade Radboud (Holanda).

Usando a mesma técnica, a equipe holandesa fez uma análise mais minuciosa. O time de Meekes fez seus cristais de APH e submeteu-os a uma ressonância, só que elevaram a temperatura mais devagar. Dessa forma, puderam assistir a reação quase em câmera lenta. O que os holandeses descobriram é que o diabo estava nos detalhes: eram os resquícios do catalisador ácido usado numa das formas da APH que criava um equilíbrio químico entre os isômeros E e Z, levando a um menor ponto de fusão. Quando se retiram ou se neutralizam esses traços ácidos, a reação torna-se mais lenta, o que resulta no APH com ponto de fusão mais elevado.

An image showing the structure of acetaldehyde phenylhydrazone

Estrutura química da fenilhidrazona acetaldeído (APH para os íntimos). A solução do quebra-cabeça estava em algo tão elementar quanto a isomeria E-Z, análoga às variantes cis/trans que se estudam no Ensino Médio.

A saga para solucionar o “curioso caso” da APH foi relatada em artigo publicado na Crystal Growth & Design em janeiro deste ano. Com o mistério resolvido, como fica a antiga disputa entre Fischer e Causse. O francês acreditava que as condições de produção da APH tendiam a produzir diferentes “gaiolas” estruturais. Fischer achava que não, mas as descobertas de Threlfall indicam que Causse estava mais próximo da verdade. No entanto, ainda não está claro quais são essas condições.

Para Meekes, o fenômeno que acontece com a APH pode ter similares em outras substâncias. O pesquisador holandês lembra que a indústria farmacêutica costuma usar o ponto de fusão como medida de controle de qualidade de seus produtos, descartando lotes com fusões mais elevadas. Para ele, uma medida mais dinâmica do ponto de fusão — como a usada para solucionar o mistério da APH — poderia garantir mais precisão e evitar desperdícios de princípios ativos nas fábricas de remédio. Talvez seja o fim de duas dores de cabeça com uma solução só.

Referência

rb2_large_gray25Carlos Bernades et al. The Curious Case of Acetaldehyde Phenylhydrazone: Resolution of a 120 Year Old Puzzle where Forms with Vastly Different Melting Points Have the Same Structure [O Curioso Caso da Fenilhidrazona Acetaldeído: resolução de um quebra-cabeça de 120 anos no qual formas com pontos de fusão imensamente diferentes têm a mesma estrutura]. Crystal Growth & Design, ano 19, n. 2, pp. 907-917. 7 de janeiro de 2019, DOI: 10.1021/acs.cgd.8b01459

[via Chemistry World]

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