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10 Considerações sobre A praça do diamante, de Mercè Rodoreda ou sobre resistir como uma mulher

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/01/10-consideracoes-sobre-praca-do.html

O Blog Listas Literárias leu A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda publicado pela editora Planeta; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Sensível e primoroso em todos os aspectos literários, A praça do diamante mais do que tudo é sobre força e resistência feminina; tudo isso numa voz que a despeito de toda a oralidade captada pela tradução, chega-nos com a cadência e o ritmo de um lirismo que tal qual o primeiro encontro entre Quimet e Colometa, não nos proporciona uma leitura simplesmente dita, mas uma dança, uma dança que move nossos olhos ao tempo e ritmo da ingenuidade de sua narradora;
2 – No caso a narradora é a própria Colometa que resgata sua estória de vida perpassando ao fundo todas as turbulências da história espanhola entre as Grandes Guerras e sua própria Guerra Civil. O curioso é que embora escrito em 1960, quando a narradora já terá experimentado todas agruras da vida [mas também talvez por isso], sua narrativa flui com marcas de uma oralidade entre a ingenuidade e talvez um olhar um tanto infantil, o que justifica em meio a todo o horror as notas de esperança que traz o romance, principalmente em seu desfecho carregado de simbolismos e um amor dos mais puros a qual uma das mensagens possa ser que a grande vitória de Colometa tenha sido não sucumbir ao horror, ainda que tenha flertado com o abismo em seu momento mais dramático;
3 – Ainda quando jovem, Colometa [apelido dado por seu esposo] depois de uma dança com o intrépido Quimet termina com o antigo noivo e casa-se com o jovem e com quem aos poucos e com alguma dificuldade vai construindo a sua família entre madeiras, pombos [já que eles criam um pombal em seu apartamento], e as dificuldades naturais a uma vida pobre. Grande parte da narrativa perpassa essa relação entre ela e o marido, sendo que em muitos momentos a narradora prefere insinuar do que dizer algo explícito. Espacialmente sobre os momentos mais difíceis com Quimet e os filhos;
4 – A essa altura é preciso dizer que em grande parte uma das leituras e interpretações que se pode depreender da leitura é a condição feminina. Há algo do sofrimento das princesas dos contos de fada na vida de Colometa. Orfã de mãe e com uma relação não das melhores com a madrasta, desde jovem ela acaba lidando com as coisas que a vida lhe oferece, o matrimônio com Quimet embora aceito pelo calor das paixões não deixa de ser um pouco esse tipo de coisa, especialmente quanto ao prosseguimento do casamento e todas as dificuldades enfrentadas. É a seu modo uma sobrevivente, uma mulher de muita fibra que quando atravessada a família pela guerra, será sua persistência que levará à resistência e ao final um tanto esperançoso no mundo;
5 – Aliás, ainda no gancho da condição feminina, parece-nos que a voz ingênua ganha muito mais potência ao apresentar o problema. Descontando obviante as reflexões que se exige ao analisar uma voz em primeira pessoa, o contraste entre a sociedade dos homens e a sociedade para as mulheres se torna gritante aos olhos do leitor através do comportamento e dos acontecimentos com Quimet e Colometa. No caso dela, teremos ainda a discussão acerca das mulheres em tempos de guerra e que como poderemos compreender dos dramas de Colometa é tão perigosa e mortal quanto para homens no campo, tendendo eu ainda a dizer, vivendo em condições ainda piores, já que no caso de Colometa, por exemplo, estando sozinha no mundo e tendo de lidar com um mundo cada dia mais hostil e desesperador;
6 – E já que adentramos à estética, eis outro elemento arrebatador do romance. Trata-se de uma destas narrações que todo e qualquer aprendiz a escritor deve conhecer para beber um pouquinho da fonte. A narradora Colometa como sugerem muitos autor não nos mostra, nos revela, e com que potência nos revela as distorções de uma sociedade. E isso é que talvez faça de sua aparente ingenuidade, arma poderosa. Não trata-se de uma ingenuidade Polyanna, pelo contrário. é ingenuidade ardilosa que embora talvez nem suspeite o leitor, esta mesma ingenuidade está levando-o à compreensões críticas. Isso porque a voz de Colometa não julga, vai descerrando a cortina dos acontecimentos enquanto com uma delicadeza voraz conduz os leitores e leitoras a determinado caminho. Somos nós que tomamos partido, nós, com nossas éticas e nossos valores que logo passamos a perceber em que tipo de sociedade injusta está Colometa. Somos nós que passamos a admirar a resiliência quase inabalável da protagonista. A praça do diamante é também sobre a arte do narrar;
7 – E isso terá reflexos em como perceberemos o período histórico. As cores que se dá ao conflito civil. A dureza dos dias de guerra, a insensatez dos homens e a cisão social que a guerra cria nos chegam com o devido peso ao passo que Colometa e sua família vão mais e mais sofrendo com as desventuras bélicas, inclusive com a participação de Quimet e seus amigos no conflito. A degradação da cidade e das almas ganha tonalidades vívidas pela voz ardilosa [no bom sentido] de Colometa;
8 – Nesse aspecto, inclusive, outra importante vertente de leitura do livro é o contexto de romance histórico. Contudo com muita distância dos romances históricos. No caso deste livro a história não é algo contado, mas vivido por suas personagens, em que uma até dirá que “a história é melhor ser lida nos livros do que fazê-la com canhões”. É uma frase potente, como tantas outras no romance, mas nesse caso ainda mais interessante se tomarmos a obra não como o escrever a história, mas sim uma tentativa de vivê-la e assim, quem sabe compreendê-la. Através de Colometa Rodoreda parece querer viver a história e também convidar seu leitor a vivê-la. E vivê-la, como diz Mateu é bem mais complicado;
9 – Além disso, vale reforçar a leitura do livro enquanto compreensão de um passado que cada vez mais parece quer saltar para fora. Ondas nacionalistas, polarizações, especialmente a polarização entre ricos e pobres que a despeito de quem a negue, é em tempos bicudos que a divisão de classes vem à tona. A questão de classe é outra presença forte no romance. No auge do conflito a questão de classe também atravessará a vida de Colometa e de forma atroz tirando-lhe quase tudo, até mesmo a resiliência e a resistência. No entanto o sopro de esperança é dado quando até essa força está por sucumbir e a vida oferece então caminhos à narradora;
10 – Enfim, A praça do diamante é prosa e também é poesia. Sua narração é sutil, porém devastadora. A potência do romance se faz nesta obra que mesmo sendo capaz de enternecer não perde em momento algum a sua capacidade crítica. É um convite à esperança em tempos em que ela [a esperança] parece desaparecida. Aliás, há certa melancolia em “viver” as tragédias do Século XX quando os homens no Século XXI parecem dispostos a fazer as mesmas besteiras de novo. Acompanhar a vida de Colometa é mergulhar em tempos difíceis, mas que fique-se com a mensagem que sobrevive: a resistência. Lembro do que o teórico Bosi falava sobre resistência, sobre o insistir. Colometa insiste e resiste à vida e a tudo que ela lhe traz. Não que não lhe haja dor e desespero, mas onde a perseverança cerra-se com a ternura do desfecho do romance. Aos tiranos e à própria e hostil existência nossa doce e boa vingança será sempre sobreviver. Colometa é uma sobrevivente das mais fortes. Forte como só uma mulher é capaz de ser.

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