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'Há enfermeiras que passam por cima do protocolo para dar a mão aos pacientes'

Fonte https://www.huffpostbrasil.com/entry/pacientes-coronavirus-espanha_br_5e81f5a7c5b66149226b44f8

Só se ouvia a chuva e o som do abrir e fechar das portas automáticas. Diante do Setor de Urgências do Hospital Infanta Sofía, em Madri, estão reunidas algumas pessoas com olhar perdido. Elas não podem fazer mais que esperar. Seus familiares tiveram que entrar no hospital sem acompanhantes, devido às medidas de segurança impostas pela pandemia de coronavírus. Pelo menos há um teto que cobre a porta por onde entram as ambulâncias e onde as pessoas podem se refugiar. “Se você pensa que isto daqui está tranquilo, pergunte lá dentro e verá que não”, diz um segurança ao ouvir alguém comentar que imaginava “uma situação muito pior”.

Da entrada é possível ter um vislumbre da sala de espera, onde várias pessoas estão separadas por um metro e meio. Algumas estão recebendo soro. Outras estão com respirador. Elas são, na maioria, pessoas idosas. E todas estão sozinhas. Na sala, faz silêncio. Ninguém a não ser o paciente pode estar ali. Tanto faz se sua casa fica a meia hora ou a duas horas de distância. Mas como ir embora e deixar o paciente ali sem saber o diagnóstico, nem se você terá que levá-lo para casa outra vez? 

Os pés envoltos em sacos de lixo

A calma da sala de espera contrasta com o vaivém de ambulâncias e táxis diante da porta. Quase todas as pessoas que chegam são idosas. Para entrar no hospital, algumas precisam da ajuda de enfermeiras ou do taxista –sempre com luvas, máscara e um álcool gel aplicado depois. Outras são retiradas das ambulâncias em cadeiras de rodas ou macas.

A imagem não poderia ser mais impactante: duas pessoas vestidas de branco de alto a baixo, luvas azuis e óculos que cobrem a única parte que ainda estava descoberta: as maçãs do rosto e os olhos. Chamam a atenção os pés, envoltos em sacos de lixo por cima dos sapatos. Esses profissionais tiram os pacientes das ambulâncias e depois levam uns 20 minutos para tirar as roupas protetoras um do outro, cuidadosamente, sem tocar em nada, colocando-as a seguir em sacos de lixo que são fechados com muito cuidado. Passam desinfetante neles próprios e sobre todos os instrumentos usados. Esfregam a maca com força e esmero. “São dias difíceis, e estamos até aqui de trabalho”, diz o motorista da UTI móvel, cujo interior está completamente coberto de plástico transparente –teto, paredes e piso.

Profissionais de saúde tiram o EPI um do outro.

Entre idas e vindas aparece uma jovem chorando porque queria dar um carregador de celular a sua irmã. “Ela foi internada ontem, e o celular dela está descarregado”, ela fala à funcionária administrativa que passa a manhã inteira tentando explicar aos familiares que não podem entrar. “Me dói muito não estar com ela.” A enfermeira pega o carregador e promete entregá-lo à paciente: “Sabemos como estes dias são sofridos para vocês, querida, estamos cuidando deles”, ela responde em seu melhor tom de voz, embora esteja visivelmente cansada.

Em meio a essas cenas acontece uma coisa que até agora seria muito normal, mas que hoje em dia produz um pequeno raio de esperança no meio de tanta tragédia: aparece um casal a ponto de dar à luz. A mãe está andando sozinha, segurando a barriga. Ele vem atrás, carregando a sacola do bebê. Dão uma máscara à mãe e falam ao pai que ele terá que ficar do lado de fora por enquanto.

Eles fabricam seu próprio material de proteção

Tudo isso aconteceu em quatro horas. É hora do jantar, e duas auxiliares de enfermagem saem para fumar um cigarro na esquina. Contam que os profissionais vêm improvisando seus próprios materiais para os equipamentos de proteção individual (EPIs) e que nesta segunda chegarão as máscaras doadas pela Inditex. Elas fumam apressadas porque têm trabalho a fazer, embora não estejam no piso dos contagiados.

Perguntadas sobre o grande número de idosos que chegam ao hospital, elas lamentam que “alguns dos que estão entrando não vão sair” e dizem que suas colegas na UTI estão sobrecarregadas. “Tem muita gente morrendo sozinha. Algumas enfermeiras passam por cima do protocolo para segurar a mão desses pacientes”, relata outra moça que sai depois. 

“Eles não podem se despedir”

De fato, há pacientes que nem sequer entram vivos. Em um momento da tarde chega uma ambulância com as luzes acesas, mas a sirene desligada. Dela saem dois enfermeiros completamente cobertos (incluindo os sacos de lixo cobrindo os pés), levando uma maca em que há uma pessoa coberta dos pés à cabeça com uma dessas lonas da cor de alumínio que alguns dos presentes até agora só haviam visto na televisão. Tudo continua em silêncio, exceto pelas ordens dadas pelos médicos.

Com o passar das horas, mais pessoas vão chegando ao setor de Urgências do hospital, e muitos dos acompanhantes fazem uma tentativa desesperada – por outro lado, muito humana – de entrar com seus entes queridos. As moças de “atenção ao paciente” repetem diversas vezes, cansadas, que ninguém a não ser os doentes pode entrar no hospital.

“Não, vocês não podem se despedir”, elas respondem às pessoas que estão há horas esperando  por alguém que finalmente vão internar. De fato, alguns dos pacientes internados foram apenas com a roupa que estavam no corpo – sem carregador de celular, óculos, algum livro, nada. Se alguém quiser que alguma coisa seja entregue a um paciente, pode deixar o objeto na entrada do setor de Urgências, mas surge uma dúvida: em vista da quarentena, é justificável esse deslocamento até o hospital para deixar, por exemplo, um carregador de celular para um doente?

A ansiedade dos enfermeiros

Os hospitais de Madri estão tão lotados que foi preciso abrir um hospital de campanha no centro de convenções da Ifema. Às 18h começam a chegar ambulâncias para trasladar alguns dos contagiados para esse local. Um grupo de enfermeiros chega à porta nesse momento. Eles trocam palavras de incentivo enquanto organizam os pacientes de cinco em cinco nos veículos. Uma enfermeira comenta em voz alta que sua ansiedade estava tanta que ela precisou sair para respirar um ar fresco: “Começo a ficar com a respiração cortada, e os óculos de proteção ficam embaçados”.

O homem que está a ponto de se tornar pai faz uma selfie com a máscara, mostrando a sacola de bebê que está levando. Ele manda a foto a um grupo de Whatsapp. Sua família e seus amigos, provavelmente. Ele não sabe se vão deixá-lo estar presente no nascimento de seu filho, mas tem certeza que os destinatários dessa foto não vão poder conhecer o bebê por algum tempo.

São 20h, e, deixando o hospital para trás, de volta a Madri, outra imagem atípica: a M-30 e a M-40 estão vazias. Em qualquer domingo normal, as rodovias estariam cheíssimas neste horário. Ao fundo vê-se Madri vazia e sem poluição. E a mídia está divulgando uma boa notícia: o número de contágios está caindo um pouco na Itália, o país para o qual a Espanha olha com um pouco de medo.

Este texto foi originalmente publicado no HuffPost Espanha e traduzido do inglês.

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