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10 Perguntas para o professor João Luis Pereira Ourique

Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/05/10-perguntas-para-o-professor-joao-luis.html

No post de hoje aproveito para conversar com meu professor de literatura durante minha licenciatura na Universidade Federal de Pelotas, João Luis Pereira Ourique. Alunos que passaram pela graduação da UFPEL  no Centro de Letras e Comunicação provavelmente em alguma disciplina conheceram seu trabalho, o que, em geral, sempre nos admira o vasto e amplo conhecimento referencial do professor, não só acadêmica, mas também sempre por dentro das leituras dos estudantes, na literatura, nos quadrinhos, nos cinemas. Nesta entrevista, em modo de conversa, o professor Ourique compartilha conosco diferentes e diversos dilemas da literatura cujas reflexões são de longo alcance e versam sobre diferentes desafios e anseios no universo dos livros, da literatura e da leitura. Confira:

1 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Imagino que poderíamos começar numa perspectiva de introdução e, aproveitando de sua experiência, tanto na crítica literária quanto na educação, perguntar-lhe da relevância da literatura para o ensino, bem como, de que forma o senhor observa esta relação em nosso presente? Além disso, partilhar da minha desconfiança que a despeito de iniciativas e projetos bastante pontuais, não lhe parece que a literatura tem sido negligenciada nas discussões da educação brasileira?
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Há uma inegável aceitação da importância da literatura para a formação do homem – afirmação esta que emprega termos já utilizados por Antonio Candido que enfatiza os aspectos da função humanizadora da literatura, no entanto, é muito comum percebermos que essa aceitação se pauta em um clichê, em um olhar que destoa da relevância da literatura e da necessidade da formação se sujeitos-leitores. Parece, a esse entendimento, que a literatura existe em um vácuo histórico e social, sem necessidade de qualquer formação. Tal postura não é de se estranhar, pois conforme Raymond Williams a cultura é algo comum, sendo a linguagem um dos elementos mais importantes – e também comum – dentro da cultura, o que faz com que as pessoas “consumam” os produtos culturais e acabem não dando a devida importância que julgam inicialmente. Esse olhar que valoriza desvalorizando, ou seja, que acaba por legitimar o desprestígio da literatura e dos leitores de textos literários ao defender o seu suposto papel no âmbito das relações humanas reduz a leitura e não a amplifica, como seria desejável e parte da busca por esse mesmo olhar. Quando percebermos a literatura como algo ao mesmo tempo comum, singular e plural é que poderemos pensar, de fato, com a literatura e não com uma percepção de fora, que julga pura e simplesmente [obviamente que toda a leitura e crítica é uma atribuição de juízo de valor]. Ao refletirmos sobre essa questão é possível observarmos a dificuldade de Ler [no sentido sujeito do verbo] e que é mais fácil a aceitação do que já existe, de alguns conceitos articulados a partir do senso comum. As dificuldades em estabelecermos leituras reflexivas nos direciona para respostas mais fáceis – sem admitirmos que não são as respostas, mas as problematizações decorrentes de todo esse processo de leitura [aqui posso mencionar o livro de Bauman e Mazzeo – O elogio da literatura]. Quanto ao aspecto da negligência no âmbito da educação brasileira eu devo destacar que não se resume à literatura, mas também à leitura. Formar leitores – ou “sujeitos-leitores conscientes de sua historicidade”, expressão que empreguei em outros trabalhos – é um desafio muito grande. Estamos submetidos a uma realidade social absolutamente desigual [não apenas no ponto de vista econômico, mas também educacional] e que inviabiliza – até mesmo para classes mais abastadas – o acesso não às obras, mas a reflexões consistentes sobre textos literários ou não. Ao analisarmos os documentos oficiais [PCN, BNCC, entre outros] estão presentes propostas muito consistentes do ponto de vista teórico e metodológico do trabalho a ser desenvolvido pelo professor na educação básica. O problema é que, além de problemas na formação dos professores [tanto na perspectiva individual quanto nas deficiências que evidenciamos dentro da própria universidade e da falta de estrutura da escola pública], há uma dificuldade no entendimento do necessário conflito que a leitura exerce – e deve exercer – nos seus leitores, situação que é vista como um problema e não como um objetivo a ser atingido. Assim, é possível convivermos com essas contradições enquanto sucumbimos gradativamente ao principal clichê que se torna um mantra para muitos professores e sociedade e que parece ser cada vez mais difícil de ser superado: “na teoria é uma coisa, na prática é outra”… Tal postura não é capaz de perceber que a teoria que não se relaciona com a prática mencionada é, na verdade, a própria prática, pois a leitura mais elaborada é o que deveria nortear o trabalho de formação de leitores.
2 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Nos distanciamos então daquilo que propõe Paulo Freire, de que “o próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática”? No caso da literatura, que estamos falando aqui, tais mecanismos e processos não dificultam vermos a literatura enquanto direito nosso, como nos propõe Antonio Candido? Além disso, não acaba corroborando com a imagem de uma literatura encerrada em si mesma, impedindo que discutamos ou atentemos para suas relações com a sociedade e, a partir disso, conseguirmos justamente discutir de que modo isso dificulta a compreensão de nossas idiossincrasias, mazelas e autoritarismos cotidianos?
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: O problema é que os ensinamentos de Paulo Freire não se constituíram em uma proposta educacional mais abrangente, ficando restritos ao discurso pedagógico. As ideias do educador brasileiro são importantes como pensamento crítico ao ensino tradicional – buscando separar a formação da instrução -, mas ainda assim estão vinculadas ao paradigma da consciência. É algo absolutamente necessário como parte das reflexões para qualquer educador dos novos tempos, mas como ponto de partida considerando as novas demandas e questões sociais e históricas, o que apenas se caracteriza como lamento pelo fato de não termos entendido essas posturas no seu devido tempo e avançado para outros patamares. Estamos, ainda, tentando administrar problemas relativamente simples do ponto de vista teórico em razão das extremas desigualdades presentes na atualidade. Por simples, no entanto, não se pode aceitar como algo simplório, visto que as dificuldades para compreender algo “simples” não necessariamente o torna menos importante, sendo nisso que se insere a perspectiva freiriana. Dessa forma, os direitos subjetivos, entendidos aqui como aqueles que não são facilmente entendidos por qualquer pessoa, acabam por ser percebidos como inúteis – também em decorrência das desigualdades mencionadas anteriormente – ou, no mínimo, como descartáveis ou, ainda, como privilégio de quem conseguiu ter acesso a bens materiais e estabilidade econômica. Para que ler – e para que ler literatura – se nos falta quase tudo (até mesmo o livro)? A reflexão de Antonio Candido é de uma atualidade inquestionável: quem considera importante para si a leitura, a cultura, a literatura, também deverá considerar isso como um direito aos demais, independentemente do acesso aos demais bens compressíveis. Candido, assim como Freire no campo da educação, foi capaz de elaborar uma análise adequada da importância da literatura ao apresentá-la como um direito humano fundamental e o seus argumentos esvaziam questionamentos limitados e limitadores do próprio processo de inclusão. No entanto, a realidade brasileira corrompeu em boa parte essa argumentação da literatura como um direito a partir daquele que tem acesso à leitura, pois se esse indivíduo não vê como relevante, importante, ou ao menos interessante, também não verá necessidade de outros terem acesso a esses bens culturais. Estamos em um ambiente tóxico para a leitura literária e sem espaço qualificado para que professores possam atuar para formar leitores literários. Outro fenômeno histórico do século XXI é a possibilidade de acessar qualquer informação, qualquer texto, qualquer imagem e ao mesmo tempo disponibilizar a escrita individual ou de pequenos grupos marginalizados ou que não tinham oportunidade de serem lidos/ouvidos para todos. Tal oportunidade gerou espaços absolutamente legítimos, mas que acabaram por não reconhecerem que a leitura também se tornou – muito pela quantidade do que foi produzido ao longo da história – uma forma de arte. Negligenciar essa nova função da leitura faz com que os novos leitores não tenham as melhores condições para reconhecerem o que é relevante ou não na produção literária, algo como um hiato formativo percebido em períodos pós guerras: ao final de um conflito ocorre a retomada da vida normal, a reconstrução do que foi destruído, e podemos identificar um certo amadorismo nas estruturas improvisadas nesse reinício em virtude das perdas dos engenheiros, dos artesãos, assim como na educação, na arte e na literatura. Tivemos uma espécie de guerra invisível que buscou apagar, confrontar – muitas vezes com toda a razão – os valores estabelecidos e a tradição. O problema é que ao substituir o “velho” pelo “novo” não existe a segurança de que será “melhor”. De alguma forma esse simplório diagnóstico instiga ao pensamento sobre o novo papel da literatura: todos são, de alguma forma, escritores, mas poucos são leitores, o que faz com que não consigamos ser uma sociedade crítica nessa direção, repetindo argumentos, reiterando valores e dogmas e problematizando situações de conflito que já deveriam ser consensuais. E se cada um está mais preocupado em se fazer ouvir e não há ninguém que o ouça, a não ser aqueles que também diriam o mesmo, estabelece-se o espaço ideal para que a compreensão do outro, da experiência do diferente, do testemunho do que está, de fato, à margem acabe por se perder no vácuo da existência.
3 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: O senhor adentra talvez uma questão que marca nosso presente: todos querem falar, mas há pouca disposição a se escutar. Mesmo nas universidades, um local que se pressupõe a pluralidade, tive experiência, por exemplo, de conhecer leitores que já não se permitem mais ao contraditório. Falam de filtros que criam para condicionar suas próprias leituras. “não leio fulano de tal, por tal razão”, ou então afirmações pretensamente políticas, “leio apenas aqueles cuja voz me representem”. O senhor acredita que este seria um dos maiores riscos para a literatura? Além disso, em sua experiência na docência, de que modo vem percebendo tais comportamentos? São muito recentes, ou vem se solidificando de forma gradual ao longo do tempo?
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Cabe destacar que o campo da crítica literária também é um espaço de poder no qual os valores de uma parcela da sociedade representada pelos seus leitores acaba por ocupar nichos específicos. E isso é absolutamente natural no processo histórico. O problema é exatamente a inquestionabilidade dessas situações, a impossibilidade do revisionismo histórico e cultural, as aceitações e negações das produções culturais e suas leituras ao longo da história. Nesse sentido, parece que o único aprendizado por alguns que se posicionam contra o status quo foi a desconfiança e a crítica generalista: se, por um lado, havia [e, em alguns casos, ainda ocorre] a perspectiva dada a priori do “não li e não gostei” de parte de quem detém o discurso dominante, atualmente observamos cada vez mais produções legítimas que trazem a qualidade de sua produção atrelada quase que exclusivamente a essa relação de autenticidade, de representatividade e de ocupação a partir dos discursos periféricos. Isso é saudável e desejável desde que não se torne aquilo que pretendia combater no princípio e acabe apenas por substituir um discurso por outro. Além disso, outro aspecto negativo é o vazio de referências – tanto de conhecimento acerca da tradição literária [para além do mero cânone estabelecido] quanto de embasamento teórico e crítico sobre as produções que visam ser legitimadas. É importante reiterar que a legitimidade já está dada e não há necessidade – do ponto de vista cultural e teórico – de estabelecer outros paradigmas, ficando restrito ao debate político que se apresenta empobrecido. Esse olhar limitado evidencia uma ignorância erudita por um lado e um reconhecimento positivo a ser dado de antemão por outro. Claro que há no âmbito da academia oportunidades para a crítica e para uma discussão centrada nas próprias obras, bem como inegável qualidade de obras que até hoje se encontram na periferia dessa mesma tradição literária. Talvez em um futuro não tão distante possamos perceber releituras consistentes sobre o presente e uma articulação com o passado, mas também poderá haver um vazio para esses novos leitores do amanhã que não serão capazes de perceber qualidade em obras que estão ocupando a espaço crítico somente pelo aspecto político – como nós sentimos hoje ao reavaliarmos obras de períodos anteriores da nossa historiografia literária. Respondendo mais diretamente à pergunta, não são pensamentos recentes, o que é recente é uma espécie de orgulho da ignorância, de um distanciamento intencional e de destruição do que veio antes. Os leitores diluídos na sociedade podem fazer essas escolhas, mas um leitor mais especializado – aqui inseridos professores universitários, da educação básica, críticos e teóricos – não pode abdicar do passado, deve, antes de mais nada, pensar que não temos um presente, temos apenas passado, temos transformações que alimentam e recuperam as experiências e os testemunhos dos indivíduos e das culturas mediante as produções artísticas. A rejeição que alguns setores da sociedade davam a determinadas produções e seus autores estava mais no campo político, mas não do apagamento das referências, tanto que exatamente essas referências é que possibilitavam a inserção de novas produções, oxigenando o debate e as leituras, articulando com novos tempos e novos leitores. O problema maior é que não se vê a intenção política de forma articulada com as obras, mas apenas como um espaço de poder a ser ocupado. Para tornar tal reflexão mais clara podemos trazer um exemplo das pichações que ocorrem nos espaços urbanos. A manifestação das ruas, ainda que tenha absoluta legitimidade [exceto quando se constituem em mero vandalismo], não é arte. O contraponto à pichação é o grafite, pois enquanto que o “pixo é a voz das ruas”, o grafite é a arte nas ruas e podemos observar algo além da mensagem inicial, identificando outras possibilidades e nos deslocando nesse processo de leitura para algo além do aspecto político e panfletário, reorganizando o pensar de uma forma que não somos capazes de mensurar naquele momento. Esse leitor que somente picha pode vir a se constituir em uma grande perda para a sociedade, não se restringindo aos leitores literários que terão cada vez mais dificuldade em entender e compreender a linguagem poética, mas se estendendo a outras áreas nas quais o pensamento necessita de um grau de abstração maior. No meu trabalho como docente tenho percebido um aumento gradativo não só das dificuldades de leitura, mas da rejeição à leitura que exige um pouco mais de dedicação, de trabalho e de atenção. Não basta, para muitos alunos da educação básica e acadêmicos de cursos superiores, estabelecer relações a partir do que os outros leem – mesmo considerando outros gêneros em que as habilidades de leitura são importantes, com destaque para o cinema -, pois o aprofundamento crítico e reflexivo com base em uma obra ou texto de referência pode causar mais transtorno do que oportunizar uma mudança de perspectiva, pois esta primeira leitura foi incorporada – com um viés positivo ou negativo – de tal forma que esse leitor se fecha à percepção, se tornando impermeável. Essa impermeabilidade o faz querer desesperadamente ser ouvido – e não apenas ouvido: aceito em seus argumentos. Caso os argumentos apresentados não sejam capazes de sustentarem as visões que defende é comum passar do “cruzar de braços” que o distancia dessas novas perspectivas para o ataque ao novo, para uma rejeição ativa àquilo que confronta os valores consolidados. Esse talvez seja o grande problema na atualidade, o da perda da curiosidade, da permanência da dúvida, da abertura para outras possibilidades e da felicidade em ser capaz de perceber algo diferente. Eu disse “talvez”… espero que seja apenas uma impressão e espero que não encontre eco nas vivências de outros educadores.
4 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: O senhor traz uma questão interessante, a relação da literatura com outras artes, como o cinema, por exemplo. Aliás, o senhor coordena neste sentido o projeto 24 frames de literatura que discute essa questão. Além de comentar esta relação entre literatura e cinema, o que pensa da literatura em relação com outras artes, seus diálogos com quadrinhos, teatro, música, a indústria dos jogos eletrônicos que também acabam sendo em alguns casos, narrativas. Que tipo de consequências isso pode nos trazer para a literatura? São atores que competem por um público? Ou artes que, se dialogarem podem ampliar nossas perspectivas? 
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Sua pergunta me possibilita retomar o que havia mencionado sobre a curiosidade acerca da leitura literária. A falta de interesse dos novos leitores sobre aquilo que não supre a sua necessidade no âmbito mais subjetivo do termo, revela também parte dos valores da sociedade, como uma reflexão acerca das motivações dos indivíduos em suas trocas cotidianas. Obter mais do que deixa cada um saciado sem esforço acaba por construir muros onde deveriam existir pontes. O que para mim é “interessante”, como um dado que possibilita analisar parte dessa realidade, é a premissa de que a arte deveria contribuir para esse efeito de torpor coletivo, como uma espécie de valorização a partir do já conhecido e não como uma produção [construção, realização, ou qualquer outro termo que julgar adequado] que deveria questionar as premissas e os dogmas. Parece que ocorre uma confusão entre alguns consensos mínimos que decorrem de escolhas e definições políticas, culturais, econômicas e científicas, passando pelos valores morais e éticos, com o questionamento por si só, como se bastasse o ponto de vista de um indivíduo para colocar em dúvida todo o conhecimento acumulado. Questionar não é apenas se fechar ao que existe, mas dialogar com todos esses processos e, no nosso caso específico, articular respostas provisórias a questões que se renovam e continuam a nos desafiar. Afinal, conceitos tão antigos como a própria literatura apenas apresentaram momentos, enquanto que as obras permanecem como testemunhas daqueles tempos e pensamentos. As mudanças tecnológicas permitiram espaço para outras manifestações artísticas e as relações entre os gêneros – tanto dentro da própria literatura quanto da literatura com outras artes – sempre existiu. A historiografia mais tradicional permite – e exige como parte dos seus argumentos – esse entrecruzamento. Como exemplo é possível mencionar a escultura e a pintura do período Barroco e sua relação com o texto literário, da mesma forma o realismo do século XIX na pintura antecipando o movimento literário e, ainda, as vanguardas europeias como referências para a escrita modernista. O diálogo entre as artes, portanto, não é apenas salutar, mas necessário se quisermos compreender melhor a própria obra inicial, ou seja, aquela que se apresenta como o objeto principal de leitura: observamos relações entre o romance e o filme com um interesse maior no texto literário, assim como o contrário, e também com uma preocupação com as zonas de contato em que as teorias passam a não fazer um sentido absoluto nem para um nem para outro. Resumindo: não interessa, no meu ponto de vista, se vejo positivamente ou negativamente as consequências para a literatura; vejo como algo impossível de ser negado sob pena de perdermos vários aspectos desses fenômenos, aqui incluído o próprio fazer literário. As consequências são apenas as transformações históricas que não podem/devem ser avaliadas com um juízo de valor além do que está ao nosso alcance a partir do que a própria história nos oferece como parâmetro – não como expressão absoluta, mas como alertas sobre o reacionarismo que se mascara na defesa do bem em oposição ao mal. Nessa direção é que a arte pode ser oxigenada e a literatura respirar livremente – liberdade com responsabilidade marcada pela permanente possibilidade da crítica. Todos esses “atores” competem por um público – e a competição, desde que seja honesta, não é prejudicial a nenhum deles. O que me angustia com certa frequência é esse afastamento das discussões, esse olhar empobrecido, com respostas prontas a partir de perspectivas calcadas no senso comum: se o livro é melhor/pior que o filme, por exemplo, isso pouco importa, o que interessa é como podemos fazer nossa visão evoluir a partir dessas obras. E é nessa linha que surgiu o projeto 24 Frames de Literatura. Tive e ainda tenho a felicidade em ter participado e colaborado para a realização de projetos como esse. Minha maior motivação sempre foi oportunizar espaço para que o diálogo se estabelecesse e, no caso do 24 Frames, um grupo de alunos percebeu a oportunidade de contar com meu apoio para a elaboração desse enorme trabalho. Da mesma forma, posso mencionar outros projetos desenvolvidos em parceria com acadêmicos e colegas – destaque para o curso de extensão Sob a égide do autoritarismo e do totalitarismo: a literatura como reflexão cujas duas edições desenvolveram importantes reflexões, assim como outro projeto que articulou uma leitura interdisciplinar a partir do RPG – O Role-Playing Game e o imaginário do negro na Literatura brasileira que, assim como outras propostas de trabalho que venho tentado desenvolver junto aos cursos de licenciatura em Letras nos quais atuo como docente, oportunizou novas reflexões para os participantes, bem como renovou – em vários momentos – nossos próprios olhares sobre o que entendíamos como conceitos fechados, rompendo com definições únicas e evitando que permanecêssemos em uma ilusória segurança mantida pelo nosso precário conhecimento.

5 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: O professor chama atenção para os avanços tecnológicos. Lembro de Walter Benjamin quando aborda a reprodutibilidade técnica da arte e as possibilidades que se abrem. Do texto de Benjamin para cá o avanço dessa tecnologia é ainda mais exponencial. Isso abre às artes e aos livros novas possibilidades de discussão e reflexão. Quais as principais mudanças para o livro, pois que o debate ainda é efervescente acerca do livro e das leituras digitais? O “objeto” livro, talvez pela relação afetiva entre ele e o leitor, se mostra mais resistente. Como você vê essa questão, não só no presente, mas para o futuro da leitura? 
JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Certamente vários textos e teorias permearam minhas respostas anteriores e sermos capazes de refletir ideias próprias apoiadas em perspectivas tão importantes é um objetivo a ser alcançado de maneira ampla e não restrito a espaços privilegiados [privilégio aqui não no sentido negativo, mas do que deveria ser fundamental e acessível a qualquer pessoa]. O próprio Walter Benjamin cita que devemos ser capazes de desenvolver a habilidade de “citar sem utilizar aspas” – sem incorrermos em plágio, por certo – e esse olhar renovado a partir das leituras que realizamos aguçam as reflexões para que seja possível a construção de conceitos próprios. Nesse sentido, o objeto livro ainda terá muito tempo de vida – a tecnologia que ele agrega [o formato que dialoga de forma mais ampla com o corpo humano e não apenas com o olho] ainda não possui um substituto à altura. No entanto, a leitura sofre modificações constantes – nem sempre para melhor. Temos cada vez mais produtos disponíveis para o olhar, para nossa percepção, para encher nossa existência vazia e não para ressignificar a nossa experiência plena. Essa contradição acaba por esvaziar a leitura e o objeto livro em sua materialidade e sua exigência também sofre com a perda de leitores capazes desse corpo-a-corpo com as obras. O que eu posso analisar é o momento presente e os aspectos positivos e negativos – antecipando em parte um futuro possível e próximo -, mas em nenhum dos cenários há situações de perdas absolutas. Talvez para alguns eu pareça ser muito revolucionário, enquanto que para outros possa soar como conservador. E é isso que eu penso que está acontecendo na nossa contemporaneidade: uma profusão de “objetos” diversos, tanto analógicos quanto digitais, que o desenvolvimento tecnológico nos permite produzir e acessar, às vezes de maneira contraditória, como o ambiente digital/virtual para uma visita a um museu que permite, em parte, até mesmo “tocar” alguma das obras expostas. É provável que muitas pessoas não iriam ou gostariam de ir ao museu em questão, mas o fariam pela experiência nova. O mesmo está ocorrendo com a leitura. Há obras disponíveis de forma gratuita em vários sites de internet, mas não há leitores. O futuro da leitura será dado pelas novas gerações que poderão redefinir o próprio objeto livro, mas não sei se haverá uma tecnologia – a curto prazo – capaz de substituí-lo, até porque será necessário que cada vez mais pessoas incorporem como absolutamente natural essas novas tecnologias – o aspecto afetivo que menciona é um elemento a mais a favor do livro. Novamente retomo o que já mencionei anteriormente: o entendimento de que a leitura se tornou uma forma de arte, talvez a mais importante se considerarmos a quantidade de produtos que temos disponíveis e o acesso para sua produção em cada vez mais larga escala. A condição mais inerte do leitor faz com que alguém capaz de ler não seja visto como relevante, pois a interpretação de um texto se confunde com opinião a ser dada a partir de um ponto de vista cada vez mais limitado. Nessa linha de raciocínio, o olhar para o futuro é pessimista, mas também é possível pensar que a quantidade cada vez maior de produtos se esgote em sua própria incapacidade de produzir novas narrativas, novas histórias, novas experiências, ficando restritos à tecnologia e exigindo um outro tipo de novidade que irá desenvolver espaços de criação – esse um olhar esperançoso acerca do porvir. Não estou dizendo que a literatura não está produzindo nada de novo, que não há qualidade literária e excelentes obras na contemporaneidade, mas que não há a mesma visibilidade e “propaganda” desses produtos e de seus autores. Talvez, no meio desse processo, quando formos capazes de valorizar o papel do leitor seja possível vislumbrar esse futuro tão possível quanto inacessível ao menos para a atual realidade brasileira. Para mim, o problema nunca foi e nem será o formato do livro – mesmo que valorize o seu formato -, mas sim a relação do leitor com a história contada, com a emoção dos versos e com a curiosidade e a [busca pela] compreensão daquilo que fascina e instiga.

6 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Chegamos a duas questões que o senhor aborda e gostaria que discutíssemos um pouco mais. Uma é o leitor; a outra, nossa produção contemporânea, cuja pergunta faço na sequência. Antes acho importante essa discussão sobre o trazer do leitor para o jogo, caso especialmente discutido por nomes da estética da Recepção como Iser e Jauss. Outros pensadores recentes, já numa perspectiva mais pedagógica, como Langlade e Rouxel tratam dos leitores, de suas subjetividades, de suas experiências. Enfim, o leitor ganhou experiência e relevância, mas quem são esses leitores? Especialmente falando de Brasil. O senhor já tratou de alguns desafios da leitura ao longo da entrevista, muitos relacionados aos leitores. Temos realidades distintas e multifacetadas, não, quando pensamos em leitores brasileiros? 

JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: O problema que se destaca a partir do seu questionamento é a relação entre leitura e ensino, entre leitor e formação. A maior parte dos referenciais teóricos analisam a perspectiva da leitura a partir de leitores ideais – como é o caso da Estética da Recepção. O “horizonte de expectativa” do leitor é mais variado do que as teorias linguísticas e literárias são capazes de abarcar, visto que se apresentam, na maioria das vezes como diagnósticos de situações cujo turbilhão das mudanças históricas nos/as impulsiona rapidamente para novas realidades. Antes de avançar um pouco mais, quero enfatizar como ocorrem mudanças significativas em um curto espaço de tempo. Durante a minha formação na educação básica havia um distanciamento muito maior entre o que o professor ensinava – não necessariamente lia – e aquilo que os alunos liam. Tanto que até recentemente era comum que quando o professor perguntava o que os alunos estavam lendo a resposta era “nada”, pois esses leitores não percebiam que aquilo que liam poderia ser considerado “a” leitura. Quando uma nova geração de profissionais começa a levar para dentro da sala de aula vários gêneros, obras e referências, ocorre uma transformação positiva. O professor conhece – e também é um leitor – (d)as obras que os alunos leem, constituindo um cenário profícuo para a discussão e o aprofundamento de análises e reflexões. Para a minha geração era o momento ideal, mas não é isso que percebo de forma ampla na nossa formação de leitores atualmente: a leitura está funcionando antes como demarcador de território, ou seja, a leitura daquele grupo une experiências e ideias que não devem sair daquela “bolha” – uma postura provavelmente relacionada com as redes sociais em seu aspecto negativo de isolamento de opiniões contrárias – e se alguém considerado estranho àquele grupo (notadamente o professor) apresenta uma leitura a partir das obras em comum, pode acontecer daquele grupo trocar de obras para não ter que debater/discutir com quem não é bem-vindo ao clube. Esse aspecto mantém o distanciamento que havia anteriormente, trazendo novos problemas para o campo da formação, problemas que são novos e que não estavam – e não sei se estão – na agenda da educação. Quando você comenta que o leitor ganhou experiência eu acho que ganhou vivência de leitura, pois está lendo mais, tem maior acesso a obras em um universo novo e inexplorado, mas não é possível determinar que se constitui em experiência. Aqui podemos argumentar que quantidade não é qualidade: não é porque lemos mais que acumulamos conhecimento, é necessário fazer relações a partir daquilo que lemos. E é exatamente esse ponto que me preocupa e que venho argumentando de forma reiterada. Uma teoria importante que você traz para a discussão é a de Wolfgang Iser. O jogo do texto apresenta o campo no qual ocorre esse embate que é ao mesmo tempo prazeroso (todo jogo carrega um elemento lúdico e de realização), instigante (pelos desafios impostos), disciplinador (porque apresenta regras a serem seguidas) e formativo (pois sempre agrega algo além do próprio jogo), entre várias outras possibilidades. O problema é que esta teoria que utilizo como exemplo não é uma teoria pedagógica e se for aplicada de forma direta, sem as mediações necessárias, acabará por incorrer na questão do leitor ideal, distanciada do leitor real. A área da linguagem padece muito dessas relações e acaba, em muitas situações, desdenhando do saber pedagógico de um lado e sucumbindo à sua simplificação pelo viés do prazer, do lúdico, quando somos exigidos a pensar a formação de leitores. Além disso, como se não bastassem todos esses problemas, temos ainda um extremamente difícil: a realidade brasileira. Tudo o que comentei até o momento evidencia um hiato teórico e um déficit formativo que é ampliado pelos problemas de financiamento da educação – sempre vista como despesa e não como investimento – e como isso contribui para a absoluta falta de estrutura para o ensino. Some-se a isso as dimensões do país e as diversas realidades culturais. Mesmo se o Brasil fosse um país menos desigual, que tivesse um – pelo menos – adequado financiamento e investimento na área da educação, ainda assim teríamos desafios imensos para pensar a formação de leitores, entender as diversas dinâmicas de cada região e as variantes percebidas dentro de cada uma dessas regiões. A leitura literária é, antes de mais nada, uma reflexão sobre o outro, sobre esse outro em um outro tempo, em outra realidade. Estarmos abertos para entender essas diferenças não é suficiente – é apenas o ponto de partida necessário -, precisamos desenvolver uma capacidade de leitura [aqui reitero a importância da leitura como um valor importantíssimo a ponto de ser pensada também como uma forma de arte] capaz de devolver para a sociedade perspectivas sobre a construção de uma cidadania que reoriente os valores democráticos na direção do bem comum e da inclusão desse(s) outro(s). Penso que há uma preocupação maior no nosso ensino em simplificar o complexo do que em preparar para a complexidade. Enquanto não houver uma mudança de perspectiva, mesmo que tenhamos mais recursos, permaneceremos vulneráveis aos problemas de formação que nos desafiam. Quando você apresenta alguns teóricos e teorias mais recentes sobre a leitura – também poderia colocar autores já com uma trajetória consolidada, como Chartier e Manguel – se estabelece um importante espaço de discussão. O problema que percebo e que tenho procurado refletir a partir das questões formuladas é a formação do leitor – de sujeitos-leitores – que acaba sendo tangenciada por muitos fatores que não podem ser organizados em uma única linha de pensamento. Existem processos que se aproximam e se distanciam em termos geopolíticos e históricos e que tentamos contornar e, às vezes, até mesmo ignorar para atingir os objetivos mais importantes dessa formação. Não podemos sucumbir a essas limitações – algumas delas mencionadas e outras a serem inseridas nessas discussões -, mas também não é possível negligenciá-las a ponto de pensar somente no nível de subjetividades distantes desses processos “reais”, ainda que essa realidade do saber possa ser fruto da imaginação e da percepção subjetiva. A arte, nesse sentido, exige esse diálogo intersubjetivo entre os sujeitos, colocando-os em um estado de vigília necessário para aprender com essas experiências. No que diz respeito à literatura temos um problema a mais: o veículo do livro, da palavra impressa. Mesmo que consideremos um conceito mais amplo de literatura [aqui já mencionei a relação com o cinema e poderia acrescentar a própria tradição da cultura oral, das histórias e das lendas passadas de geração em geração], precisamos pensar que o texto escrito agrega uma necessidade de entendimento inicial, uma capacidade de realizarmos uma paráfrase para a nossa percepção do lido. Para que isso ocorra é necessário uma habilidade: a da leitura. Essa é uma habilidade que as outras artes não exigem ou exigem muito menos. Não é necessário ser pintor ou escultor para entender suas expressões artísticas, assim como não é necessário saber ler para assistir um filme. Com a literatura isso não ocorre. Precisamos de uma habilidade que antecede a arte, uma habilidade que é possível ser desenvolvida por qualquer pessoa e como vivemos em uma era em que o acesso à leitura – a uma alfabetização mínima, por assim dizer – é comum, parece que a leitura literária também segue o mesmo princípio. Esse é um equívoco muito frequente, visto que utilizamos os mesmos mecanismos iniciais – decodificar o código escrito -, mas que se transformam e ampliam as exigências sobre o leitor quando deparado com o texto literário. A percepção dessa problemática leva tanto a trabalhos excepcionais voltados para essa relação do leitor com a obra literária quanto a clichês e reordenamentos da literatura a padrões supostamente preexistentes. Os trabalhos formativos mais relevantes atuam nesse processo intersubjetivo, enquanto que alguns graves problemas podem ser vistos a partir de uma subjetividade de mão única, ou seja, abordar as subjetividades e as experiências dos alunos sem, contudo, os próprios formadores colocarem-se dentro dessa reconfiguração das experiências.

7 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Como disse antes, além do leitor, gostaria de lhe questionar sobre a produção, afinal, se conversamos aqui levando em muita consideração o leitor, a outra parte é essencial ao sistema literário, a produção. Você lidera um projeto de pesquisa sobre a série Amores Expressos que trata basicamente de literatura nacional contemporânea [uma série peculiar quanto a “nacionalidade” é bem verdade e que talvez deixemos para falar na sequência]. Tendo a literatura contemporânea nacional em mente e tudo que já falamos desses desafios relacionados aos leitores, como anda a literatura brasileira? Temos boas experiências pós anos 80? Os escritores do hoje estão conseguindo cumprir os desafios que a literatura lhes impõe? 

JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: A pergunta é muito fácil de responder. Sim, temos obras excepcionais – minha avaliação é tanto como leitor comum quanto a partir de leituras e análises mais apuradas – e autores importantes no cenário brasileiro e com inserção reconhecimento internacionais. Quando você menciona a partir de década de 1980 agregamos nomes que hoje já são clássicos e que não há maiores questionamentos sobre suas produções. Desde Lygia Fagundes Telles, passando por Caio Fernando Abreu, Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Moacyr Scliar, Sérgio Sant’Anna… [a lista seria enorme] temos escritores e escritoras fantástic@s. Há um questionamento mais recente – sempre é mais difícil reconhecer a arte no seu próprio tempo – que se ampara nesses e em nomes de períodos anteriores e acho que é nesse ponto que sua pergunta pode ser aprofundada no sentido de colaborar com algum tipo de indicação de leitura. Não sei se os escritores estão cumprindo os desafios impostos – se é que existem. Gosto da definição de Otto Maria Carpeaux de que a “arte alcança sempre a finalidade que não tem”, por isso que os desafios que os escritores se impõem acabam alcançando outros objetivos, outras demandas que nem eles são capazes de perceber, necessitando que seus leitores agreguem reflexões – mais uma vez a importância de leitores capazes de darem os novos sentidos se faz necessária. O projeto de pesquisa Amores Expressos – Identidades Ocultas surgiu de um interesse em articular várias possibilidades de leitura a partir de obras literárias – começando pelo próprio projeto editorial da Companhia das Letras. A ampliação de possibilidades pode ser percebida na página do Instagram que é mantida para divulgar as ações do projeto. Retomando: os escritores estão cumprindo o seu papel – o juízo de valor é dado pelos leitores [tanto os ideais quanto os reais] no que diz respeito à qualidade das suas produções. Além das obras da série Amores Expressos e de outras que foram analisadas e trabalhadas a partir das relações produzidas no projeto de pesquisa desenvolvido na UFPel, também posso mencionar o trabalho recente que estou tentando desempenhar a partir de duas obras lançadas no ano de 2019: Todos os Santos, de Adriana Lisboa, e Mulheres empilhadas, de Patrícia Melo. A autoria feminina é um dado importante e as questões que as narrativas implicam permitem novas experiências para o leitor. Uma vez mais: do meu ponto de vista os escritores estão cumprindo seus papéis quando não se preocupam em cumprir um determinado papel, apenas escrevendo e procurando ampliar o diálogo intersubjetivo que a literatura possibilita. A literatura brasileira vai bem, o problema continua sendo o que interfere no acesso à leitura e também nas desigualdades que afetam a divulgação de obras de autores fora do circuito das editoras. Estamos falando de escritores que conseguem publicar – e estes sofrem com a falta de leitores, mesmo suas obras apresentando qualidade -, enquanto que apenas imaginamos aqueles que não conseguem chegar ao nosso [ainda muito pequeno] público leitor.

8 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Nos encaminhamos para o fecho de nossa conversa e até aqui, creio, abordamos questões relevantes no que se refere a leitores e autores dentro do sistema literário. Também conversamos sobre literatura, educação e academia. Talvez já seja o momento de falarmos da crítica, eixo que também sofreu muitas transformações nos últimos anos, não? Como observa a crítica literária neste cenário que conversamos?

JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Utilizei uma expressão que procurava dar a dimensão do distanciamento da crítica do seu próprio objeto de estudo e reflexão: o corpo da crítica precisa refletir sobre o espírito da arte. Ainda persiste uma visão de que a literatura está no campo do espírito, implicando em um viés que aborda sua produção como algo intangível e atemporal – sendo, também, acrítico. Assim, mesmo pensando que a literatura tenha esse caráter subjetivo – que a coloca simbolicamente nessa condição de bens incompressíveis – não podemos limitá-la a essa perspectiva para a leitura crítica que deve dotar a obra literária de um corpo, fazer com que esse espírito corresponda ao seu tempo histórico e reflita as contradições do seu tempo. A visão de Theodor Adorno é ainda muito atual. Em Crítica cultural e sociedade [primeiro capítulo do livro Prismas], o pensador alerta para o fato de que o crítico da cultura não consegue esconder a arrogância de que possui essa cultura de que fala, apresentando o problema de um distanciamento da compreensão da própria cultura, das próprias obras. Ao entendermos que existe um posicionamento político do crítico e que ele deve tomar os cuidados – não negar esse posicionamento, visto que esses elementos também o constituem – para entender como essas questões se relacionam no processo de construção da crítica, podemos, então, entender melhor as palavras de Adorno: “ao desobedecer, obedece”. Ocorre uma contradição no pensamento crítico que acaba por legitimar as estruturas ao questionar as produções culturais. Ao considerar que a literatura é apenas um espírito sem corpo, uma produção que está acima do próprio humano, a crítica sustenta aquilo que deveria questionar, ou seja, não estabelece novas possibilidades de pensar, não dialoga com a diversidade e com os problemas em sua constante renovação. Minha visão é de que essa perspectiva permanece e exerce ainda uma grande influência nos leitores mais especializados. Tal situação cria um espaço de ruptura com aqueles que valorizam as obras a partir de outros paradigmas, fazendo com que não haja uma troca, um diálogo entre as leituras e os (as) leitores(as). A ruptura acaba por sustentar um vazio formativo, um hiato no qual as obras literárias não são lidas e discutidas dentro de uma lógica da inclusão e do questionamento a partir de argumentos e também de impressões e opiniões (sendo as opiniões caracterizadas como elementos de partida para a construção dos argumentos e não como um argumento por si mesmas). É o que podemos perceber nas discussões sobre o cânone, em que ocorre a defesa de uma espécie de “patrimônio cultural” que afeta diretamente a formação de sujeitos-leitores e também “obedece” aos modelos definidos de sociedade com uma aura de questionamento. Existem muitos trabalhos consistentes no cenário da crítica contemporânea brasileira, assim como podemos acessar um histórico importante da crítica e da historiografia literária no Brasil, mas o problema é, novamente: na minha opinião, esse distanciamento entre o leitor real e o leitor ideal. O leitor “ideal” – que pode ser visto como o crítico ou o professor – deveria cada vez mais se propor a esse diálogo, enquanto que o leitor “real” precisa estar aberto às novas visões ao mesmo tempo que também coloca em discussão os seus pontos de vista. O hiato formativo que evidenciei acirra e compromete esse diálogo e faz com que espírito e corpo se distanciem cada vez mais. A diminuição desse espaço que separa os leitores não é de responsabilidade absoluta nem de um e nem de outro, mas sim de uma conjuntura maior que já discutimos e que atua no cenário da educação brasileira marcado pelos inúmeros problemas materiais e de estrutura. Quando ocorre uma precariedade das condições formativas, aumenta o espaço entre os leitores e afeta a construção de pontes que poderiam aproximar nossas leituras e nossos mundos. A crítica é importante para apresentar possibilidades de transformação, mesmo que ela não se constitua como tal. Considerando essa abordagem, o pensamento crítico dialoga com a literatura e não há literatura sem leitores, por isso a crítica também deve dialogar com os leitores – mas um diálogo a partir da obra, sem cair no impressionismo e no caráter empírico que, via de regra, limita ao invés de ampliar os horizontes e as perspectivas críticas.

9 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Não podíamos deixar de abordar em nossa conversa algo muito caro a seus trabalhos, a pesquisa sobre o autoritarismo. O senhor coordena o grupo de pesquisa Ícaro, que dentre outras coisas, pesquisa especialmente o autoritarismo a partir da teoria crítica da sociedade. Hoje parece mais claro a uma parcela maior da sociedade brasileira os riscos de regressos autoritários. Bem verdade também que estes riscos são ambidestros, e nos dois polos da política; como, inclusive já vimos nesta conversa, o diálogo parece cada vez mais improvável. A literatura em tempos autoritários sofre um bocado. Mas é também a literatura uma das melhores formas e forças que temos para resistir ao autoritarismo, não? 

JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Antes de abordarmos o posicionamento do crítico perante as obras literárias considero necessário evidenciar que existe arte do lado da barbárie. A arte, por si só, como experiência estética e subjetiva não garante uma proteção contra o horror, pois também pode ser utilizada como objeto de opressão, como fator de valorização de valores autoritários e excludentes. O que a literatura nos apresenta é uma reflexão, um testemunho que dialoga com outras perspectivas, ou seja, um indivíduo que se apresenta muitas vezes de forma contrária ao que defenderia no cenário político de que participa. O que poderia ser visto como contradição seria a própria condição humana e na direção dessa compreensão é que a leitura deveria trilhar. Outro aspecto é a importância que a sociedade atribui aos textos literários. Uma supervalorização desse “poder” transformador faz com que não percebamos que a arte não realiza nada, ela apenas indaga e questiona e legitima as condições encontradas pelo autor em um determinado contexto histórico e social. Arthur Danto já discorreu sobre esse Descredenciamento filosófico da arte e de como a vida continua, como a natureza prevalece, assim como o rio segue seu curso. Não é a poesia que bloqueia as águas, apenas pode motivar e/ou legitimar a construção de uma barragem, não sendo capaz de romper essa mesma barreira. Isso não quer dizer que a ideologia que permeia as obras não seja poderosa ou não interfira no percurso humano, somente não o faz diretamente, dependo das pessoas e de suas escolhas. Nesse ponto é que um leitor crítico se insere: articulando possibilidades de reflexão e escolhendo um “partido” (obviamente não trato aqui de política partidária, mas do posicionamento necessário na sociedade, mesmo que seja resistir à ela própria) com base em suas convicções que não podem ser confundidas com certezas. A dúvida perante o mundo é uma constante e não impede que algumas decisões e posicionamentos sejam adotados. O que adotei deriva da percepção dos Direitos Humanos e da construção de uma Cidadania que não admite posições autoritárias e verdades absolutas, assim como não se abre a questionamentos fáceis que visam apenas desestruturar o conhecimento para dar lugar à barbárie, uma mentalidade que busca quebrar com a lógica do pensar em nome da liberdade de pensamento. Considero ser cada vez mais necessário nos posicionarmos contra esse tipo de pensamento e de ideologia que ignora o ser humano em sua complexidade e não admite a reflexão. Antonio Candido já discutiu que a “nossa cultura naquilo que ela tem frequentemente de mais vivo, de mais fecundo e de mais inspirador, é também uma cultura do contra” [Tempo do contra. In: _____. Textos de intervenção.], por isso que o crítico deve procurar refletir sobre isso nas produções literárias enquanto que se posiciona fora desse espaço como sendo contra aos dogmas e ao que limita as possibilidades de leitura. O único limite deveria ser o próprio texto. Alguns pensam que a interpretação é livre de forma absoluta. Nada mais equivocado, pois em nome dessa liberdade irreal, acabam restringindo e, contraditoriamente, limitando a própria obra. A liberdade é o limite da condição humana e quando não há essa condição de humanidade a liberdade se corrompe e vira opressão. Essa relação entre a produção literária e a sociedade é vital para que o crítico possa transitar entre os textos e os problemas históricos dos quais também faz parte. Quando recupera uma obra clássica ou de outro tempo também está dialogando com o seu presente. Quando reconhece que somos uma soma de passados que ressignifica o momento de sua consciência, acaba por reelaborar também os projetos de sociedade e atuar como um intérprete capaz de compreender melhor os papéis que representamos, não para rasgar o roteiro, mas para inserir algumas anotações, algumas rubricas que o colocam um pouco mais próximo das obras e seus autores. A resistência ao autoritarismo, nessa visão, talvez não ocorra por causa das obras, mas pela relação com elas. Resistir também é resistir à própria obra, dialogando com ela sem se deixar sufocar, entender sem precisar aceitar, enfim, resistir a nós mesmos e às nossas contradições, ao nosso viés autoritário. Essa busca permanente e essa leitura inacabada permitem que vários pesquisadores mantenham contato e dialoguem frequentemente. O Grupo de Pesquisa CNPq ICARO (icaro.ufpel.edu.br) é um dos espaços que articula essas reflexões, mantendo um intercâmbio permanente com outros pesquisadores, instituições e grupos de pesquisa de projeção internacional [destaque ao trabalho em parceria com o GrPEsq CNPq Literatura e Autoritarismo (UFSM), o NEGUE – Núcleo de Estudos de Guerra e Literatura (UFMG), o LEHViC – Laboratório de Estudos do Horror e da Violência na Cultura (UFMS)] cujo trabalho, dentre outras coisas, resultou no livro O Lugar do Abjeto. Pretendemos, como grupos que dialogam de forma contínua, manter um ponto de inflexão perante as condutas autoritárias para que ao menos a crítica literária não fique atrelada a modelos de opressão e segregação. E, sim, a literatura é uma das melhores formas que temos para resistir à opressão, mas também uma das mais sedutoras que o autoritarismo pode lançar mão para realizar seus objetivos.

10 – LISTAS LITERÁRIAS/DOUGLAS ERALLDO: Chegando ao desfecho desta bela conversa que, creio, foi capaz de abranger a literatura em suas diversidades e complexidades; e ainda que estejamos vivendo este momento estressante da humanidade, mais uma pandemia e os horrores que este tipo de evento despertam, poderíamos fazer aqui um exercício de análise de tendência. É possível imaginarmos, por exemplo, o que será da literatura em 2050? Para finalizar, deixo livre considerações finais, desde já agradecendo ao tempo dedicado. 

JOÃO LUIS PEREIRA OURIQUE: Essa é uma questão muito complexa: prever o futuro da literatura. Podemos apenas acessar o que temos disponível e analisarmos com expectativas otimistas ou pessimistas. Esse otimismo ou pessimismo varia também de público – podendo ser apenas pontos de vista e vinculados à percepção da realidade. Quando eu comentei que somos uma soma de passados que ressignificam o presente, isso também pode ser aplicado para a representação do futuro: em ambos os casos – passado e futuro – quando são imaginados ou recuperados pela criação literária acabam por apresentar a nossa realidade em suas contradições. O presente é a soma de passados e ao mesmo tempo um projeto de futuro. As ideologias que se consolidam como parte da nossa própria identidade são uma espécie de resumo da história humana e de suas comunidades. Uma ideia que circula sobre obras que imaginam o amanhã é a de que acabam representando o seu momento de forma mais sincera, ou seja, enquanto que o olhar para o passado seleciona apenas aquilo que o indivíduo e seu grupo consideram o melhor (sendo o papel do leitor fundamental para ler além dessas escolhas e analisar o testemunho da arte nessa idiossincrasia que integra os seres), o vislumbre do futuro revela o que gostaríamos de ser a partir do que já somos (outro trabalho difícil para um leitor crítico: o de perceber que o melhor que queremos ser carrega situações de conflito e problemas não resolvidos). Mas o conteúdo das produções literárias é uma incógnita, é um vir a ser em que podemos antecipar alguns temas, mas nunca a forma como essas questões serão apresentadas; essa(s) forma(s) irá(ão) nos surpreender mesmo quando não trouxer(em) nada de novo, se constituindo de pastiches ou mesmo de meras cópias do que já temos disponível – nesses casos, é a situação da sociedade, dos seus leitores, que acaba sendo mais significativo para auxiliar a compreensão. Quanto à forma certamente haverá mudanças. Não sei se o objeto livro como o conhecemos irá permanecer; penso que sim e acredito pelo menos em uma variação muito próxima do atual, pois o livro eletrônico poderá avançar tecnologicamente a ponto de reproduzir a forma de leitura que temos com o livro impresso. Além disso, ainda haverá a questão do valor de troca, o acesso ao produto por classes privilegiadas que sempre irão querer ter sua exclusividade. E, em uma sociedade que terá acesso aos textos digitais, o que irá diferenciar: talvez o custo de um livro. Já observamos esse fenômeno na atualidade: temos uma quantidade absurda de obras disponíveis na internet, mas a reedição de um clássico ricamente ilustrado e encadernado, por exemplo, ainda possui compradores, enquanto sites que disponibilizam conteúdo gratuito sequer são acessados – o problema não é a literatura e nem o veículo e nem o conteúdo de suas produções: ainda é o espaço (a ser) ocupado pelos leitores. O único prognóstico que posso fazer a esse respeito é de que haverá cada vez mais leitores, mais pessoas lendo. Se isso representará qualidade ou apenas quantidade depende da visão otimista e pessimista que temos e da que as próximas gerações terão. Não sei se verei o ano de 2050, mas se estiver com saúde certamente ainda estarei lendo um livro impresso… e alguns outros digitais também. Agradeço muito o convite para essa entrevista e sua disponibilidade em dar atenção a essas importantes discussões. Provavelmente não agreguei muito para os leitores desta entrevista, mas ao menos deixei algumas referências que considero relevantes para quem quiser aprofundar o estudo sobre esses temas. E também permaneço à disposição para algum comentário, crítica ou contribuição a partir dessas questões.

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