Fonte http://www.listasliterarias.com/2020/07/a-vida-e-dura-10-consideracoes-sobre-o.html
A vida é dura. 10 considerações sobre O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli ou uma ode ao cu
O blog Listas Literárias leu O cheiro do ralo, de Lourenço Mutarelli publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – O cheiro do ralo é a estreia de Lourenço Mutarelli na literatura, após já consolidada sua premiada carreira nos quadrinhos. Neste romance as marcas que se verão nas obras posteriores do autor, marcadas por uma realismo que descamba sempre para o mundano, insólito, surreal e sempre muito, muito escatológico. A sujeira da vida comum que impregna a alma de seus personagens, habitantes do absurdo e testemunhas da degradação;
2 – No livro o narrador é um sujeito carregado de camadas e camadas de profundidade. Um cínico que passa a viver sob a égide de certa misantropia. Um duplo mal composto sempre lembrado como o cara do comercial do Bombril. Um antiquário que nos narra as estranhas figuras que adentram seu estabelecimento;
3 – Marcado pela alegoria e pela metáfora, o sujeito, de visões e conceitos endurecidos acerca do existir, com malícia e pouca empatia vai desfilando frente ao leitor uma certa quantidade de personagens que lhe batem à porta com suas quinquilharias, dramas, histórias, e vasta necessidade por algum dinheiro. E o narrador bem sabe aproveitar-se dessas dores, de modo que sua postura carregará em grande parte ecos de um naturalismo sempre em voga em nossa literatura. As relações de poder estão postas e ele não se roga das prerrogativas que o dinheiro lhe possibilita;
4 – Entretanto, se aparentemente temos diante de nós uma detestável figura, como às pencas andam por aí, seria errôneo olharmos tão somente para as desvirtudes deste narrador, egoísta, misantropo, aproveitador, entre outros adjetivos possíveis. Trata-se de uma alma em conflito, uma alma que absorve e devolve o mau cheiro. O romance, focado no ralo do banheiro de sua loja, por onde saem os piores fedores, mais do que uma metáfora, propõe um jogo em que em determinado momento o ralo e a alma do sujeito tornam-se a mesma coisa. E aí está seu potencial, pois que, ao não saber se o ralo apodrece sua vida ou se sua vida apodrece o ralo demonstra que nele há qualquer crise, algo em sua consciência parece tentar apontar para algum caminho;
5 – Isso demonstra já algo que se verá em muitos trabalhos do autor na literatura. Certa crise existencialista, certa incompreensão dos homens e das sociedades. Tudo parece ruir, pender ao escatológico, às podridões. Ética e comportamentos adentram suas narrativas, do mesmo modo que um gigantesco temor pela morte de um Deus. Alguns romances de Mutarelli invariavelmente serão marcados pela dúvida, uma lutra dura travada dentro de si entre acreditar ou não em algo. Isso será um tanto mais nítido no desfecho da narrativa que ao seu modo flerta com o fantástico ao mesmo tempo que dialoga com as bases do realismo na literatura nacional;
6 – Tudo isso feito com linguagem cirúrgica. É interessante olharmos para alguns narradores de Mutarelli. Uma narrativa em primeira pessoa que a seu modo é também dialogal. Os diálogos, contudo, sempre à boca de seu narrador-protagonista, o que, claro, tem todas as suas implicações. Diálogos curtos, cambiantes e muitas vezes cujas fronteiras se avançam. Sempre frases curtas, diretas, precisas e, acima de tudo, banhadas na oralidade das vidas comuns;
7 – Todavia, é preciso ponderar sobre essas vidas comuns. São de fato os personagens possibilidades concretas e verossímeis das paisagens urbanas. Especialmente das paisagens mais caídas e decrépitas. Contudo, as tintas de Mutarelli pendem ao hiper-real, a um realismo potencializado em suas estranhezas. A cada abrir de porta, uma figura estranha, com histórias estranhas. O narrador as torna ainda mais estranhas, lhes dá caráter de regra, não de exceção, a viciada em craque, os endividados, as putas, etc… é um grande desfilar de vidas miseráveis a desfilar pelo antiquário, onde todas as devassidões e “pecados” serão vividos e testados;
8 – Aliás, a esta altura temos de tratar da metáfora mais visível, da obsessão mais presente [a bem da verdade essa é uma obsessão que se repetirá noutros romances do autor], o cu. Em determinado momento o livro inclusive fala em odes ao cu, talvez justiça a este orifício quase que patrimônio cultural de uma nação, presença nas mais diferentes ferramentas do imaginário nacional. Se diz-se que é um romance sobre o ralo, não seria exagero dizer que é também um romance sobre o cu. Todos os cus. Ou um cu mais específico. Rosebud. Afinal, a obsessão do narrador pela bunda de uma garçonete é o que alimenta a trama do princípio ao fim. Tudo passa por aquela bunda, por aquele cu. E essa é uma fixação bastante recorrente em sua obra que merece mais atenção;
9 – É ainda, talvez, narrativa do desencanto. O escracho, o abuso do surreal pintado de hiper-real, tudo isso converge para certo olhar desencantado do narrador para com a existência. É um careca selvagem vivendo sob as regras de Darwin. Neste sentido, também revelador sua relação com a boa alma, o homem da caneta. Em seu cinismo e sua arrogância, bem sabe o narrador que seu modo de viver é o do mais forte, como assim bem sabe que as boas pessoas ainda que prometam, não serão capazes de cumprir suas maldições e ameaças. O desfecho, do modo que vem, só reforça isto, e nesse caso mostra seu engano ao se esquecer das potencial pessoas más que tratara mal também;
10 – Enfim, O cheiro do ralo é destas obras contemporâneas que temos de ler. Mutarelli é capaz de dar vida aos mais estranhos personagens, mas ao fazê-lo nos apresenta um mundo sem mediação. Mais próximo da dura existência real. Talvez por isso, hiper-real, ainda que muitas vezes nos questionemos da surrealidade dos acontecimentos. Ler o romance é um mergulho na fragilidade de nossas condutas, uma experiência radical no abjeto, no escatológico, onde a despeito das tantas mediações, a depravação e as taras afloram e conduzem as vidas.