Vitória do kirchnerismo nas primárias reflete na economia Argentina e do Brasil. Pleito marca um momento decisivo para política na América do Sul
A Argentina viveu um dia de turbulência econômica na última segunda-feira, 12. O epicentro do abalo foi a vitória com folga da chapa composta pelo presidenciável Alberto Fernández, que tem como vice a ex-presidente Cristina Kirchner, sobre a do atual presidente Mauricio Macri nas eleições primárias do último domingo, 11.
Um dia após o resultado das primárias ser divulgado, a Bolsa de Comércio de Buenos Aires registrou uma queda de mais de 10% e o índice Merval – que representa as principais ações cotadas na Bolsa – encerrou o dia em baixa de 37,93%. O dólar registrou alta, cotado em 53 pesos, uma alta de 14%.
As Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso, na
sigla em espanhol) – nome oficial do pleito – funcionam como uma primeira
etapa das eleições gerais. Todos são obrigados a votar e as coalizões partidárias
que não conseguirem o mínimo de 1,5% dos votos são excluídas das próximas
etapas eleitorais.
A vitória da chapa Alberto/Cristina surpreendeu o mercado financeiro, que até a última sexta-feira, 9, estava otimista em relação ao desempenho de Macri nas primárias. Porém, o resultado não surpreendeu em termos políticos, uma vez que a aprovação do governo Macri gira em torno de 38%. A popularidade de Macri veio erodindo gradativamente ao longo dos últimos anos. O motivo é a falha do atual presidente em cumprir a promessa que o elegeu: retirar a Argentina da crise através de uma agenda liberal.
Embora contasse com um voto de confiança do eleitorado em seus dois primeiros anos de mandato, por conta da crise herdada, Macri chegou ao quarto ano na Casa Rosada – sede do executivo – sem conseguir cumprir as metas prometidas. Ao contrário, a Argentina, hoje, está 32% mais pobre que há quatro anos. E a expectativa para este ano é sombria: projeções calcadas no cenário atual estimam que o PIB deve registrar uma queda de 1,5% em 2019. Já a inflação está prevista para chegar a 50%.
Entre o fracasso de Macri em colocar a economia nos trilhos e as suspeitas de corrupção que recaem sobre Cristina Kirchner – investigada em processos que envolvem suspeitas de propina, peculato e lavagem de dinheiro – o eleitorado argentino parece ter apostado na segunda opção. Isso porque, segundo analistas, será difícil para Macri reverter até 27 outubro (data das eleições presidenciais) a vantagem da chapa adversária. De qualquer forma, o resultado do pleito presidencial pode dar um novo fôlego da esquerda no continente sul-americano ou reafirmar o fim da chamada Maré Rosa – termo usado para designar a ascensão de partidos de esquerda no continente no início dos anos 2000.
Reflexos no Brasil
A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China e dos EUA. Por conta disso, o resultado das primárias argentinas também impactou na economia brasileira. Na última segunda-feira, 12, o dólar fechou o dia em alta de 1,11% frente ao real, sendo negociado a R$ 3,98. A Ibovespa caiu 2%, chegando a 101.915 pontos.
Além do impacto econômico, houve também embaraço político diante do posicionamento do governo brasileiro em relação ao resultado da votação. Em um evento em Pelotas, o presidente Jair Bolsonaro disse que o Rio Grande do Sul pode se tornar “um novo estado de Roraima” em caso de vitória da chapa Alberto/Cristina em outubro.
“Povo gaúcho, se essa esquerdalha voltar aqui na Argentina,
nós poderemos ter, sim, no Rio Grande do Sul, um novo estado de Roraima. E não
queremos isso: irmãos argentinos fugindo pra cá, tendo em vista o que de ruim
parece que deve se concretizar por lá caso essas eleições realizadas ontem se
confirmem agora no mês de outubro”, disse o presidente.
Temperada pelo tom alarmista, a declaração quebra a tradição
da diplomacia brasileira de se manter neutro, esperar o resultado para, em
seguida, buscar um diálogo pragmático com o candidato vencedor.
O resultado do pleito será tema da 18ª Reunião do Conselho de Governo, que ocorre nesta terça-feira, 13, no Palácio da Alvorada, em Brasília. A reunião deve definir como o governo Bolsonaro acomodará sua ideologia frente a uma possível vitória de Alberto Fernández. Alguns auxiliares do presidente defendem até mesmo rever a participação do Brasil no Mercosul, impondo concessões para a permanência do país no bloco. Outros, mais moderados, defendem evitar posicionamentos precipitados e aguardar os desdobramentos do pleito no país vizinho.
É improvável que Bolsonaro retire o Brasil do Mercosul, especialmente no momento em que o bloco acaba de fechar um histórico acordo com a União Europeia (UE) – que ainda precisa ser ratificado por todos os 27 países do bloco europeu.
Porém, a forma como o governo brasileiro vem tratando aliados cruciais acende um sinal de alerta de que, de fato, o governo brasileiro pode, por falta de desejo de diálogo com vozes dissonantes, colocar em risco um pacto que é fruto de 20 anos de negociação.
O presidente brasileiro já deixou exasperados parceiros comerciais importantes do Oriente Médio ao escolher o alinhamento a Israel. Além disso, Bolsonaro já anunciou que, na disputa entre EUA e Irã – o principal parceiro comercial brasileiro no Oriente Médio e o principal importador do milho brasileiro -, o Brasil está alinhado ao governo americano.
Recentemente, a Petrobras se recusou a abastecer dois navios iranianos que, por falta de combustível para regressar ao Irã, passaram semanas ancorados no porto de Paranaguá (PR). A empresa argumentou temer ser acusada de violar as sanções americanas ao Irã. Porém, os navios iranianos transportavam milho, o que significa que o abastecimento não feriria as sanções americanas, que não envolvem alimentos e medicamentos. “Vocês já sabem que estamos alinhados com a política deles [dos EUA]. Então fazemos o que temos que fazer”, disse Bolsonaro na ocasião.
Além disso, curiosamente, o apoio explícito de Bolsonaro a Macri pode prejudicar o atual presidente argentino. Isso porque a figura de Bolsonaro tem forte rejeição entre a população argentina. O motivo é o histórico de Boslonaro de exaltar ditadores, torturadores e ditaduras. A Argentina viveu uma das mais sangrentas ditaduras entre 1976 e 1983, com um total de mortos estimado em 30 mil. Logo, qualquer exaltação a ditaduras ou torturadores é amplamente rejeitada no país.
Percebendo a forte rejeição dos argentinos ao apoio de Bolsonaro, Alberto Fernández aproveitou para destacar a diferença entre ele e o presidente brasileiro na segunda-feira, ao comentar a declaração de Bolsonaro sobre sua vitória nas primárias. Em entrevista ao programa “Corea del Centro”, ele chamou Bolsonaro de “racista, misógino e violento”.
“Com o Brasil, teremos uma relação esplêndida. O Brasil
sempre será nosso principal sócio. Bolsonaro é uma conjuntura na vida do
Brasil, como Macri é uma conjuntura na vida da Argentina. Agora, em
termos políticos, eu não tenho nada a ver com Bolsonaro. Comemoro enormemente
que fale mal de mim. É um racista, um misógino, um violento… O que eu pediria
ao presidente Bolsonaro é que deixe Lula livre e pediria que se submeta a
eleições com Lula em liberdade”, disse o presidenciável argentino.
A posição delicada de Macri em relação ao apoio de Bolsonaro foi destacada pelo jornalista Guga Chacra, comentarista especializado em política internacional. “Estas declarações de Bolsonaro apenas prejudicam Macri. Para Macri, a pior coisa que pode ocorrer é ser associado a Bolsonaro, com péssima imagem na Argentina (e os dois são mto diferentes). Para Fernandez/Kirchner, o pior é ser associado a Maduro (e tb são diferentes)”, destacou Chacra, em sua conta oficial no Twitter.