Fonte https://www.huffpostbrasil.com/entry/aborto-constituinte_br_5d8ba2ece4b01c02ca627cf1
Entregue ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, então deputado Ulysses Guimarães, em março de 1987, a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes pedia que fosse garantido à mulher o “direito de conhecer e decidir sobre seu próprio corpo” e a garantia “de livre opção pela maternidade, compreendendo-se tanto assistência ao pré-natal, parto e pós-parto, como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo para a saúde da mulher”.
Contudo, um ano e meio de intensos debates e negociações depois, o texto final da Constituição de 1988, promulgado em 5 de outubro daquele ano, deixou de fora o direito ao aborto legal. Permaneceu como referência na legislação o Código Penal, de 1940, que permite a interrupção da gravidez só em casos de estupro ou risco de vida da mulher. Em 2012, essa garantia foi ampliada para casos de fetos anencéfalos, por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
Sem apoio da maioria dos constituintes, a bancada feminina recuou na votação final, e foi feito um acordo para que a legalização do aborto ficasse de fora da Constituição e fosse debatida apenas na legislação infraconstitucional. “Tivemos que concordar. Naquele momento era melhor retirar para que se pudesse avançar nas questões mais macro. Essa foi a grande discussão”, afirmou ao HuffPost Brasil Eleonora Menicucci, integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), responsável pela elaboração da carta aos constituintes.
O objetivo da estratégia era evitar uma restrição aos direitos reprodutivos até então conquistados, diante da articulação de parte dos parlamentares que queriam acabar com qualquer possibilidade legal de interrupção da gravidez.
Assim como as propostas de emenda à Constituição em tramitação atualmente que estabelecem que a vida começa na concepção, há mais de 30 anos, constituintes também fizeram uma ofensiva para emplacar essa ideia.
Presidente do CNDM, a socióloga Jacqueline Pitanguy lembra que em 1987 já havia no Brasil um movimento que se intitulava “pró-vida” e influenciava os parlamentares. “Nós conhecíamos o Congresso como a palma da mão. Sabíamos que não havia possibilidade alguma de que aquele Congresso votasse pelo direito ao aborto. Então, o que nós fizemos? O CNDM tomou a decisão de que o aborto não era matéria constitucional. Por quê? Se a gente colocasse o aborto para ser votado, nós perderíamos. Aconteceria a derrota plena. Entraria a menção do direito à vida”, disse Pitanguy ao HuffPost.
Integrante da Constituinte, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA) recorda a articulação da bancada feminina. “Houve uma análise de que que perderíamos qualquer proposição de liberação do aborto, então optamos por manter os direitos já pré-estabelecidos, no caso de risco de vida e [gravidez provocada por] estupro”, afirmou à reportagem. Se os conservadores emplacassem o tema na Constituição, seria mais difícil mudar depois.
A bancada feminina decidiu por essa estratégia na votação do texto final para evitar um retrocesso.Lídice da Mata
A divergência sobre o tema dentro da própria bancada e fatores do jogo político também influenciaram. Integrante do CNDM, a advogada Iáris Ramalho lembra que foram priorizadas outras demandas femininas em que havia um consenso maior entre os parlamentares, como direitos trabalhistas ou ligados à comunidade do campo.
“Era barganha mesmo. Se você quiser isso, a gente não bota aquilo, principalmente [com] os evangélicos. Teve deputado que disse: ‘você quer que eu perca os votos da Igreja no meu estado?’. Ou ‘sou a favor do aborto para minha mulher, minha filha, se precisar, mas para botar na lei não’”, afirmou a advogada à reportagem.
Debates sobre aborto na Constituinte
A Assembleia Constituinte de 1987 foi organizada em oito comissões temáticas, cada uma composta por três subcomissões, que discutiam os temas previamente. Após a análise na comissão temática, o texto era enviado para a Comissão de Sistematização, que reunia os conteúdos. A etapa seguinte era a discussão no plenário, onde cabiam emendas. Uma comissão de redação fez ajustes finais.
O aborto foi discutido em duas subcomissões, uma ligada aos temas da Família e outra às Garantias Individuais. Também houve tentativas de incluir mudanças na Comissão de Sistematização.
Na subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, o relatório do deputado Eraldo Tinoco (então PFL) não incluiu o tema no texto constitucional. “Alguns assuntos, como a questão do aborto, embora muito debatidos, levantaram dúvidas quanto à sua natureza constitucional”, diz o texto. “O tema foi muito debatido nas audiências públicas, criou-se uma expectativa quanto à posição dos parlamentares, entretanto, raras foram as sugestões que tratavam explicitamente da sua legalização, contrapondo-se maior volume de sugestões no sentido de proteção à vida desde o momento da concepção”, completa o relator.
Uma das emendas rejeitadas pelo colegiado foi da deputada Eunice Michiles (então PFL), que permitia o aborto legal em caso de “má formação fetal, como possibilidade de vida vegetativa” — demanda que seria contemplada pelo STF 25 anos depois.
Nesse colegiado, ocorreram alguns dos debates mais acalorados sobre o tema nos anos 80. Em audiências públicas, representantes da Igreja Católica convidados por constituintes fizeram uma defesa contundente da restrição ao aborto, com uso de imagens de fetos abortados, recurso também usado nos últimos anos por ativistas pró-vida no Congresso. Alguns eram contra o uso de métodos contraceptivos como camisinha e pílula anticoncepcional.
A Igreja Católica, aos domingos, em todo o País, em todas as missas de domingo, falava contra o aborto. Era uma campanha muito acirrada.Jacqueline Pitanguy
Do outro lado, Eleonora Menicucci defendeu a ampliação dos direitos reprodutivos. “O acesso às informações sobre os métodos [contraceptivos], passa pelo direito que a mulher tem reivindicado ao longo de muitos anos, na história do movimento de mulheres, no Brasil, o direito à informação sobre seu corpo. A mulher que conquista essas informações, ela está conquistando um patamar no direito à cidadania, porque ela vai modificar a relação com os médicos”, disse, à época, a socióloga que se tornou ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres em 2012, no governo de Dilma Rousseff.
Enquanto ministra, Menicucci tratou o aborto legal como uma questão de saúde pública e defendeu que a palavra da mulher deveria bastar nos casos de interrupção da gravidez causada por estupro. ”É de suma importância discutir essa questão da reprodução, do descolamento da sexualidade feminina na questão da reprodução”, disse.
Trinta anos após o debate, a socióloga lembra dificuldades históricas do momento.
Estávamos saindo de uma ditadura e, sempre quando se sai dos processos autoritários, questões das mulheres passam a ser secundárias. É como se as nossas questões, as questões de gênero e de direitos das mulheres, não fossem questões da democracia.Eleonora Menicucci
Na avaliação da ex-ministra, a estrutura das instituições no Brasil também é um fator determinante para travar avanços. “A ampliação da permissão legal do aborto é muito difícil porque está inserida dentro dos direitos sexuais e reprodutivos que determinam a autonomia das mulheres, e a autonomia das mulheres para o patriarcado envolve Estado e religião”, afirma.
“A resistência ao aborto legal é patriarcal para manter o domínio sobre o corpo e a sexualidade das mulheres, como se a sexualidade fosse só para a reprodução. E ela é muito fundamentalista, vide hoje no governo [de Jair] Bolsonaro. Várias pautas de costume são relacionadas a isso”, completa Menicucci.
Na subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, por sua vez, o relator, Darcy Pozza (então PDS), propôs um texto que explicitava o crime de aborto previsto no Código Penal. No artigo sobre o direito e garantia individual à vida, o relatório diz que será “punido com crime o aborto diretamente provocado”. Em uma outra versão, ele acrescentou que a proteção da vida deveria ser garantida “desde a sua concepção”, o que inviabilizaria o aborto legal.
Foram apresentadas diversas emendas ao parecer, que acabou excluindo essa referência explícita à interrupção da gravidez. As sugestões incluíam desde a descriminalização do aborto em caso de má formação do feto até a inclusão da proteção da vida “desde a concepção”, que veda a legalização da prática. Havia também propostas para que a questão fosse decidida por meio de um plebiscito ou de uma consulta popular.
Homens pró-aborto legal
Além da atuação da bancada feminina, destacaram-se na luta pela ampliação dos direitos reprodutivos os então deputados José Genoino e Eduardo Jorge, ambos filiados ao PT à época. ”Era ótimo contar com um homem aliado. Assim como existiam homens contrários, que houvesse também aliados”, lembra Jacqueline Pitanguy.
Lobby do batom
Ainda que não tenha garantido o aborto legal na Constituição de 1988, a articulação conhecida como “lobby do batom”, entre movimentos de mulheres e a bancada feminina na Assembleia Constituinte, foi responsável por diversos avanços para equidade de gêneros. A expressão “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, no artigo 5º, é um marco ao estabelecer pela primeira vez a igualdade jurídica entre homens e mulheres em uma Constituição brasileira.
Movimentos feministas também destacam conquistas como o direito à titularidade da terra para mulheres rurais, a extensão da licença-maternidade e bases para Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006. De acordo com levantamento do próprio Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, 80% das reivindicações foram aprovadas. O conselho criado em 1985 pelo então presidente José Sarney era vinculado ao Ministério da Justiça.
No âmbito dos direitos reprodutivos, além de fomentar o debate, a constituinte Lídice da Mata destaca outras vitórias. “Claramente derrotamos a ideia do controle da natalidade [pelo Estado] e afirmamos a liberdade do planejamento familiar do casal”, lembra.
Vida desde a concepção
Se o texto final da Constituição não retrocedeu nos direitos reprodutivos, não faltaram tentativas nesse sentido nos anos seguintes. Apresentada em 1995 pelo então deputado Severino Cavalcanti (então PFL), a PEC 25/1995 previa o direito à vida “desde a concepção”. O texto foi derrotado na Câmara dos Deputados.
Uma das cofundadoras do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMA), Iáris Ramalho lembra a reação feminina à época. “Teve uma mobilização muito grande em todos os estados do movimento de mulheres. Foi maravilhosa a luta. Teve uma reviravolta. Os deputados diziam: ‘cheguei na minha cidade e o aeroporto estava cheio de mulheres dizendo não à PEC 25’”, conta.
Para as mulheres que atuaram na Constituinte, essa época foi fundamental no processo de conscientização da população sobre a equidade de gêneros. “Foi um período muito importante para a vida das mulheres. Muitas, como eu, se descobriram no feminismo durante a Constituinte. Foi um movimento que abalou as estruturas para o bem. Foi uma época em que houve uma reviravolta na sociedade, maior do que nas Diretas Já, em termos de mudança particular, do indivíduo”, afirma.
Ramalho acredita que essa construção histórica também é base para mobilizações mais recentes, como os protestos que evitaram a aprovação da PEC Cavalo de Tróia em 2017 [que estabelecia a vida desde a concepção] e a campanha “Pílula fica, Cunha sai”, em 2015, em referência ao projeto de lei que inviabilizava o acesso à pílula do dia seguinte. Um dos autores do PL era o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ).
“De lá [1988] para cá, ninguém segura mais as mulheres. Havia um grupo muito pequeno em 1910, quando as mulheres queriam entrar nas universidades. Depois, foi a luta para mulher casada abrir conta no banco sem autorização do marido. Depois quando a mulher queria permanecer no trabalho e o marido não queria… Foram avanços pontuais que culminaram com a Constituinte. Depois disso, até nos grupos que se dissolveram após a Constituinte, as mulheres não voltaram para a vida de antes. Mesmo dentro de casa, elas estão conscientes. A conscientização coletiva foi feita”, resume Iáris Ramalho.
Para Eleonora Menicucci, o debate sobre o aborto legal na Constituinte foi importante para visibilidade do tema como uma questão de direitos humanos e refletiu na organização dos movimentos feministas. Após esse momento, “todas as vezes em que se coloca a questão do aborto como PEC, ou para reduzir os direitos ou para avançar, as mulheres estão presentes”, lembra a ex-ministra, também em referência às mobilizações de 2015 e 2017, quando ela mesma foi às ruas.
A socióloga acredita também que houve um consenso maior para evitar retrocessos nessa área dentro da bancada feminina, mas aponta o conservadorismo do Legislativo como razão para que a ampliação da permissão legal à interrupção da gravidez não tenha sido ampliada. “Eu como ministra não consegui avançar nessa questão porque o Congresso é extremamente conservador, reacionário, hipócrita em sua grande maioria”, disse.
Menicucci destaca que “toda pauta de costumes, de direitos sexuais e reprodutivos, o Brasil só avançou até hoje pelo Supremo” e cita como exemplo a criminalização da lgbtofobia, o uso de células-tronco e o aborto nos casos de anencéfalos.
Questionada sobre o futuro da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, a ex-ministra disse que gostaria de ver o avanço, mas admitiu não ter esperanças, devido ao avanço no conservadorismo nos poderes.
A ação em tramitação no Supremo foi debatida em audiência pública em agosto de 2018 e aguarda o relatório da ministra Rosa Weber. Após essa etapa, cabe ao presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, incluir o processo na pauta de julgamentos do plenário.