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Como as fotos do premiê Justin Trudeau de 'blackface' atingem a imagem global do Canadá

Fonte https://www.huffpostbrasil.com/entry/justin-trudeau-blackface_br_5d926b45e4b0ac3cddad34dd

Líder do Partido Liberal do Canadá, Justin Trudeau conversou com jornalistas em 19 de setembro.

Toronto – A imagem pública cuidadosamente mantida do premiê Justin Trudeau – um líder global de inclusão e multiculturalismo – foi estraçalhada por um só golpe depois da divulgação de uma foto racista dele sorrindo com o rosto pintado de marrom e um turbante na cabeça. 

A foto de 2001 faz parte de um livro de uma escola particular e prestigiosa de Vancouver. Trudeau, na época professor, aparece com as mãos e o rosto pintados de marrom, em uma festa cujo tema era “Noites das Arábias”. Não demorou para aparecer outra imagem polêmica: Trudeau cantando a música “Day-O” em um concurso de talentos da escola, de peruca negra e blackface.

Doze horas depois, surgiu um vídeo de Trudeau mais uma vez de blackface. As imagens do começo dos anos 1990 mostram Trudeau erguendo os braços – também pintados de preto. A campanha do primeiro-ministro confirmou a autenticidade da gravação.

“É absolutamente inaceitável”, disse Trudeau no último dia 19, em seu segundo pedido de desculpas. “É algo que as pessoas que vivem com esse tipo de discriminação – por causa da cor da pele, sua história, suas origens, sua língua ou sua religião – enfrentam todos os dias.”

“Como todas as minhas camadas de privilégio, não consegui enxergar isso, e sinto muito.” 

A bomba inesperada jogou o Canadá, e as iminentes eleições federais no país, sob os holofotes. A reputação de Trudeau como um líder progressivo e inclusivo ficou em xeque.

“Acho que o choque foi ainda maior porque o Canadá se construiu tanto nacional quanto individualmente segundo a premissa do bom canadense, do bom Canadá”, diz Kathy Hogarth, uma negra canadense que dá aulas na Universidade de Waterloo e é ativista antirracismo.

Fotos de Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, de brownface e blackface em três ocasiões diferentes.

O estrategista político Zain Velji, muçulmano, diz que é difícil registrar as imagens racistas de Trudeau. 

“O cara investiu tanto de seu capital político em diversidade e inclusão, agora as pessoas têm dificuldade para reconciliar [as imagens] com isso”, afirma Velji. “Por que ele não falou a respeito disso antes?”

Jagmeet Singh, líder do esquerdista New Democratic Party (NDP) e filho de imigrantes indianos, é o primeiro não-branco a se candidatar ao cargo de primeiro-ministro. Ele falou sobre as imagens no último dia 18:

“Quero falar com todas as crianças, todas as pessoas que tiveram de passar por isso e ainda sentem a dor do racismo. Quero que você saibam que podem sentir vontade de desistir do Canadá. Podem sentir vontade de desistir de vocês mesmos. Quero que vocês saibam que têm valor, que merecem, que são amados.”

Jagmeet Singh, líder do NDP, responde a perguntas dos jornalistas depois de um evento de campanha em Toronto, 18 de setembro de 2019.

No dia 19, reportagens sobre o escândalo apareceram com destaque nas homepages de sites como The New York Times, BBC, Al Jazeera e The Guardian. A página principal do The Washington Post tinha um artigo de opinião intitulado: “A esquerda do Canadá deveria se livrar de Justin Trudeau”.

O The New York Times descreveu o “escândalo crescente” como um “duro golpe” para Trudeau e sua imagem meticulosamente planejada como a do “porta-voz reluzente dos liberais sitiados do mundo inteiro”.

Desde sua chegada ao poder, em 2015, Trudeau é um dos queridinhos da mídia internacional, especialmente nos Estados Unidos, por causa do contraste com o presidente Donald Trump.

Um mês depois da posse, ele e a mulher foram fotografados para a revista Vogue. Meses depois, Trudeau foi sujeito de um perfil no famoso programa da TV americana “60 Minutes”. E, em 2017, a Rolling Stone o colocou na capa da revista, perguntando: “Por que ele não pode ser nosso presidente?”

Em seus últimos dias na Casa Branca, o ex-presidente americano Barack Obama brincou que Trudeau estava assumindo o papel do político bonito e charmoso “do futuro”.

O pai de Trudeau, o ex-premiê Pierre Trudeau, ajudou a solidificar a identidade canadense de uma sociedade diversa em 1971, declarando que o governo federal do país adotaria uma política multicultural. O próprio Trudeau acolheu quase 60 mil refugiados sírios desde 2015. Ele pediu desculpas pelo tratamento dado às populações indígenas e à comunidade LGBTQ. E também montou um ministério composto com igualdade de gênero, “porque é 2015” – uma frase que ganhou muita repercussão na época.

Mas ele foi criticado por não tomar medidas mais decisivas em relação aos direitos indígenas e no combate ao racismo, entre outras questões.

“Às vezes as ações dele não estão à altura das palavras. Várias das políticas que ele defendeu ficaram em segundo plano ou então foram diluídas”, diz Brittany Andrew-Amofah, analista-sênior do Broadbent Institute, um centro de pesquisas progressista. Ela diz que Trudeau fez menos do que deveria em relação à mudança climática e não anulou condenações judiciais relacionadas à maconha – que afetam de maneira desproporcional as comunidades marginalizadas.

O escândalo de racismo pode acabar com as chances de reeleição de Trudeau (ele se recusou a renunciar à liderança do Partido Liberal). Com pouco menos de um mês até a votação, ele está numa disputa acirrada com Andrew Scheer, líder do Partido Conservador. Uma pesquisa divulgada no começo de setembro deu aos conservadores uma vantagem de dois pontos percentuais.

Às vezes as ações dele não estão à altura das palavras. Várias das políticas que ele defendeu ficaram em segundo plano ou então foram diluídas.Brittany Andrew-Amofah

Até fevereiro, a reeleição de Trudeau parecia certa, mas sua popularidade caiu quando o escândalo SNC-Lavalin começou a dominar as manchetes. Um dos integrantes mais respeitados do seu governo, a ex-ministra da Justiça Jody Wilson-Raybould, disse ter sido pressionada pela chefia do governo a ajudar a empresa a evitar um processo judicial por corrupção.

Wilson-Raybould, a indígena a ocupar o mais alto cargo na história do país, acabou sendo expulsa do Partido Liberal – outra indicação de que as ações do primeiro-ministro são diferentes de suas palavras.

“Ele tem um padrão de comportamento preocupante em relação a quem é racialmente diferente”, afirma Hogarth. “O tratamento de Jody Wilson-Raybould foi um alerta para mim.”

A ex-ministra se pronunciou sobre o escândalo das imagens racistas.

“É terrível”, afirmou Wilson-Raybould. “Quando vi pela primeira vez achei que não fosse real… Tenho muito orgulho de ser uma pessoa indígena neste país, alguém que viveu o racismo e a discriminação. É completamente inaceitável que alguém numa posição de autoridade e poder faça algo desse tipo.”

Pintar o rosto de marrom ou de preto é algo feito por brancos, em geral no teatro, para “simplificar e humilhar” os não-brancos, diz Hogarth, a professora da Universidade de Waterloo.

“As origens estão no histórico de racismo e da mitologia orientalista, que são inaceitáveis”, diz num comunicado Mustafa Farooq, diretor executivo do Conselho Nacional de Muçulmanos Canadenses.

O blackface tornou-se uma forma de entretenimento popular – e racista – no começo do século 19, e sua história também é longa no Canadá. Ambos os países foram fundados por regimes escravagistas e exploradores das populações indígenas. Os brancos foram empoderados por meio do poder, da economia e da estratificação da sociedade, diz Andrew-Amofah.

Naquele ambiente, “o blackface ganhou popularidade porque retratava os negros como ‘menores’”, afirma ela.

A Universidade McGill contabilizou quase 350 casos de blackface no Canadá entre 1841 e 2016 – do compositor do hino nacional canadense que viajou o país como menestrel em meados do século 19 ao “Black Pete” recebendo as boas-vindas numa padaria da cidade de Edmonton três anos atrás.

Antes do escândalo, a imensa maioria dos canadenses acreditava que Trudeau era mais tolerante, solidário e influente do que Scheer, seu maior adversário político, segundo uma pesquisa recente.

“Ele [Trudeau] construiu uma base tremenda de boa vontade”, diz Shachi Kurl, diretor executivo da empresa de pesquisa Angus Reid Institute. “A pergunta é: será que essa base vai permitir que ele sobreviva [ao escândalo]?”

Ele construiu uma base tremenda de boa vontade.Shachi Kurl

O escândalo pode acabar com o apoio de Trudeau entre os eleitores progressistas – uma parte essencial do movimento que o levou a uma vitória inesperada.

Suas promessas de “dias ensolarados” e de mudança fizeram muita gente sair de casa para votar (o voto não é obrigatório no Canadá).

“Nada do ocorrido recentemente ajuda”, diz Kurl. “O que vai acontecer se a esquerda progressista não for capaz de perdoar Justin Trudeau? Eles perdem o interesse? Ficam em casa?”

Mas, na Província do Québec – onde a língua predominante é o francês e cuja população tem tido influência decisiva no resultado das eleições federais ―, os eleitores podem ser menos críticos.

O escândalo já chama menos atenção no Québec. Três jornais da capital da Província deram mais destaque a um show da cantora Céline Dion na cidade. Um quarto jornal estampou uma foto de novos elefantes no zoológico.

Falando em inglês, o governador da Província, François Legault, disse que as fantasias foram uma má escolha. Mas, quando falou em francês, ele não repetiu a mesma frase, segundo Jay Turnbull, repórter da CBC News.

Legault disse que Trudeau tinha se desculpado, “então acho que agora temos de falar de outra coisa”.  

Trudeau foi criticado por não se manifestar de forma mais decisiva contra a lei controversa de Québec que proíbe o uso de símbolos religiosos – como hijab, quipás ou turbantes – por funcionários públicos.

Ele disse ser contrário à lei, mas também afirmou que o governo federal não faria nada a respeito. Mais de 60% dos moradores da Província apoiam a lei “secular”, segundo as pesquisas. E Trudeau tem mais apoio em Québec que em outras regiões do país.

Os canadenses agora terão de avaliar o histórico de Trudeau à frente do governo à luz do seu comportamento racista no passado, afirma Velji. “Será que essas imagens definem a pessoa e tudo o que ela fez como ‘mentira’, ou será que ele provou com suas ações que foi apenas um deslize da juventude?”

*Este texto foi originalmente publicado no HuffPost CA e traduzido do inglês. 

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