Fonte https://www.huffpostbrasil.com/entry/sobreviventes-suicidio_br_5d8e4bbbe4b0e9e7604c8a84
Talvez o suicídio seja a demonstração mais explícita de o quanto os seres humanos são complexos. Foi por tristeza? Foi por desistência? Foi por desespero?
A ausência de respostas faz que se fique apenas com as perguntas, com as especulações. Por mais que ainda haja uma tendência contemporânea de reduzir o assunto ao sensacionalismo, à condenação, à martirização ou ao silenciamento do tabu, é na experiência da perda que radicalmente se constata a impossibilidade de abordar o suicídio de maneira taxativa, com causas simplistas, julgamentos e soluções fáceis.
Mensagens de positividade e de “tente ser feliz”, por exemplo, podem ser bem-intencionadas, mas podem também ignorar o descolamento da realidade por que passam muitas das pessoas em ideação suicida e estabelecer uma cobrança ainda mais insuportável e difícil de cumprir pela pessoa em desespero.
Além de as causas serem complexas e singulares, o entendimento sobre o tema pela sociedade é heterogêneo, com diferentes abordagens pela religião, pela ciência e pela moral ao longo dos séculos, como mostra o historiador francês George Minois no livro História do suicídio: a sociedade ocidental diante da morte voluntária (Editora Unesp).
Em um tema tão rodeado de perplexidade, é compreensível que se desejem respostas e explicações. A insuficiência delas, por outro lado, estimula a produção de perguntas e auxilia na compreensão do suicídio e na construção de um discurso que demonstre a necessidade de cuidarmos do sofrimento psíquico. Foi com um “por que” que a fotógrafa norte-americana Mariangela Abeo passou a construir suas hipóteses acerca da dolorosa morte do irmão, Jimmy, por suicídio, e de sua própria tentativa, aos 17 anos.
Por meio da arte do retrato, ela resolveu dar rosto, biografia e voz aos inúmeros relatos de desespero, tristeza e apatia com que se deparava. Assim nasceu o projeto Faces of Fortitude (algo como “faces da coragem”, em português), dedicado a criar um espaço de conversa franca, sem estigmas, sobre as dores do viver.
São pessoas que de alguma maneira foram afetadas pelo suicídio, seja por tentativas, por perdas de pessoas amadas ou pela relação profissional. Elas são fotografadas de maneira próxima e cuidadosa, em uma escuta disposta a acolher suas histórias de intimidade com a morte.
A morte, aliás, é o pretexto para esse encontro entre a artista e as pessoas fotografadas, mas o que acaba se revelando é a vida em suas fragilidades e persistências. Pelo menos no instante do clique, são pessoas capturadas em sua travessia, sem querer mais a morte, como canta Milton Nascimento.
Conversamos com Mariangela sobre seu projeto, as permanências e lutas que marcam cada um dos registros fotográficos e a difícil tarefa de lidar com as perdas e as limitações.
Leia os principais trechos da entrevista:
HuffPost Brasil: De onde veio e como começou o Faces of Fortitude?
Mariangela Abeo: Este projeto é um movimento por meio de fotografias tiradas por pessoas afetadas por suicídio, seja por tentativa, perda, socorristas, doença mental etc.
Aos 17 anos eu mesma fiz uma tentativa grave e depois perdi meu único irmão por suicídio há 12 anos. Comecei este projeto depois de ter sido inspirada por uma mulher que deu uma palestra sobre sofrer um trauma e usá-lo criativamente para ajudar a curar. Fiz um autorretrato e o postei na internet com minhas palavras sobre a história da minha tentativa e do suicídio de meu irmão.
O post viralizou. Pessoas de várias partes do mundo queriam fazer parte do projeto. No início, meu maior desafio era ter limites. É fácil ser tragado por isso e querer ajudar a todos. Na verdade, no começo eu realmente achava que pudesse salvar todo mundo. Tenho um amigo em São Paulo que é da área de saúde mental e que recomendou que eu criasse limites rapidamente, pois as doenças mentais não são apenas tristes, mas também podem ser muito manipuladoras e mesquinhas, e eu precisava me proteger.
Depois de estabelecer meus limites (e eles foram dolorosos), ficou mais fácil de sustentar o projeto.
Como é trabalhar com um tema que é tão cercado de dor e luto?
É muito difícil. Precisei colocar algumas coisas no lugar para ajudar a manter minha mente saudável e encontrar escapes para mim mesma.
Eu tenho um terapeuta maravilhoso que realmente me ajuda a lidar com a dor e com as coisas que preciso processar. Por exemplo, acabei de perder a primeira pessoa fotografada pelo projeto, por suicídio.
Eu sou realista, sei que isso é possível e se inclui nos destinos possíveis para nós, mas o projeto é um lugar tão especialmente seguro para mim que ficou mais difícil de processar o que ocorreu na vida real. Isso me atingiu como um soco no estômago e foi muito doloroso.
Sei também que o projeto é o meu trabalho e preciso lembrar que estou aqui para criar espaço, e não para pensar que eu possa salvar todo mundo.
Enquanto você foi criando sua abordagem das pessoas fotografadas, quais cenas e histórias deixaram mais evidente a sensibilidade com que o assunto deveria ser tratado?
Meu maior objetivo não era ter perguntas ou um processo de abordagem das pessoas. Eu só queria criar uma conversa.
Afinal, é apenas uma conversa entre duas pessoas, compartilhando uma com a outra sua conexão com suicídio e comparando histórias e experiências. É sobre ambas estarem vulneráveis.
Como posso esperar que alguém compartilhe os momentos mais dolorosos de suas vidas sem que saiba que eu também passei por isso e que pode confiar em mim e neste espaço?
Que mudanças você conseguiu fazer em sua vida e na de outras pessoas por meio deste projeto?
A maior mudança na minha vida é que o projeto me fez falar ainda mais sobre doenças mentais, suicídio e os estigmas em torno desses assuntos.
Quando você fala as coisas em voz alta, você percebe quão raramente se fala sobre isso e as reações adversas das pessoas. Mas essas conversas estão se tornando mais comuns, mesmo que lentamente.
Só que ainda não estamos nem um pouco perto de tê-las da maneira frequente e segura como devem ser, mas isso está mudando aos poucos. E lentamente é melhor que nada.
Quão importante é dar voz aos sobreviventes [termo usado para se referir a pessoas que perderam alguém para o suicídio]?
É a razão de eu fazer este projeto.
Vez ou outra recebo e-mails aleatórios cheios de ódio e isso me chateia, mas diariamente recebo mensagens de tantas pessoas dizendo que o projeto as faz se sentir menos sozinhas e lhes dá coragem para ter essas conversas em seus círculos. Elas inclusive usam o projeto como uma ferramenta para ajudar nas conversas. Isso faz tudo valer a pena.
Uma coisa que observamos é que muitas pessoas que cometeram suicídio recebem muita atenção após a morte. Isso alimenta muitas fantasias de tributos post-mortem. Por outro lado, vejo que você oferece atenção e reconhecimento a pessoas que estão vivas. Sofrendo, mas vivas. Como é isso para você?
Entendo o que você quer dizer e concordo que há mais foco na pessoa depois do suicídio, e não quando ela está lutando contra o sofrimento. E acho que esse é o problema do mundo agora. Nós somos tão fascinados pelos detalhes desagradáveis. Qual foi o método utilizado para a morte? Usavam drogas? Brigaram com a mãe? Estavam sozinhos, não tinham amigos? Eram mesquinhos? Por que isso importa? O fato de ter depressão não basta?
Em vez disso, nós os chamamos de “loucos”, os evitamos, os fazemos sentir como fardos sendo que estão vivos e necessitando de ajuda e só os valorizamos e falamos da importância da saúde mental quando é tarde demais.
Isso é muito triste e precisa mudar, e tudo depende de APRENDER a ter conversas desconfortáveis.
Há espaço para perda e tristeza em nossa sociedade hoje em dia?
Não há espaços suficientes. Não basta ter espaço nas consultas de terapia, com o médico, com seu melhor amigo. Eles precisam ser tão comuns quanto supermercados ou cafeterias. Tristeza e perda fazem parte da vida. Por que não podemos tratá-las dessa maneira?
Em contraste, quando uma celebridade tira a própria vida, as pessoas acordam para isso. O filho do comediante Robin Williams é um rosto do projeto e falou sobre o quanto as pessoas foram afetadas pela morte de seu pai. Então os espaços estão lá, mas simplesmente estão focando nas coisas erradas.
Acha que falar em suicídio tem algum efeito contagioso?
Não, acho que essa ideia é um bode expiatório fácil. O que é possível é existir muitas pessoas com problemas mentais e elas não estão sendo ouvidas ou até mesmo tendo seus problemas levados a sério.
Então, em vez de lidar com o fato de estarmos testemunhando pessoas que têm problemas tendo conversas difíceis e desconfortáveis, queremos culpar as imitações e os contágios. Isso é ridículo.
Você afirma que, por várias vezes, quase desistiu do Faces of Fortitude. O que estava sentindo na época e o que fez você querer continuar?
Eu senti que o projeto e as histórias que ouvi eram muito pesadas para eu lidar. Demais para absorver. É muito peso para se ouvir em um dia. Mas então eu percebi que só era pesado por causa dos meus próprios limites, e pela falta deles. Assim que eu os restabeleci, isso me ajudou a continuar.
Você tem alguma assistência psicológica neste projeto?
Sim, eu tenho uma terapeuta incrível, ela trabalha comigo muito antes do início do meu projeto, há mais de 7 anos. Ela o viu nascer e agora me ajuda a processar as histórias que incidem sobre algo da minha vida, além de ajudar a lidar com o que é muito difícil de lidar ou que requer recomendação profissional. Eu realmente não poderia fazer isso sem ela.
Não há espaços suficientes. Não basta ter espaço nas consultas de terapia, com o médico, com seu melhor amigo. Eles precisam ser tão comuns quanto supermercados ou cafeterias. Tristeza e perda fazem parte da vida. Por que não podemos tratá-las dessa maneira?
O que nossa sociedade pode fazer para prevenir o suicídio?
Temos que voltar ao começo. Conversar com nossos filhos mais novos sobre suicídio. Deixá-los fazer perguntas e responder a tudo com sinceridade, e em detalhes. Fazer desta uma conversa comum para que eles possam voltar com dúvidas em outro dia e você saber que eles se sentem à vontade em dizer “Papai, você disse que se mataram porque estavam tristes, mas não estavam com medo”? Eles não terão medo de falar sobre isso, e logo esse estigma desaparecerá.