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Artigo | Crescimento das terras cadastradas no Incra e a MP 910: prenúncio de crime

Fonte https://www.brasildefato.com.br/2020/04/30/artigo-crescimento-das-terras-cadastradas-no-incra-e-a-mp-910-prenuncio-de-crime

O Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é o banco de dados que registra as declarações de propriedade de imóveis rurais no Brasil. O SNCR é auto declaratório, isto é, são os próprios proprietários de terras que fornecem as declarações que constam do SNCR.

Nos últimos anos ocorreu um impressionante aumento nos dados registrados no SNCR, o que gera fortes suspeitas sobre a credibilidade destes dados.

Os gráficos 1 e 2 comparam os dados do SNCR dos anos de 2016 e 2018. No primeiro gráfico consta o número de imóveis cadastrado por classes de área, expresso em módulos fiscais (MF) que é a medida utilizada pelo Incra para classificar os imóveis como Minifúndios (menos de 1 MF), Pequenas Propriedades (1 a 4 MFs), Médias Propriedades (4 a 15 MFs) e Grandes Propriedades (mais de 15 MFs). No segundo gráfico são apresentados os dados referentes à área, seguindo as mesmas classes de área.


Gráfico 1 – Número de Imóveis Rurais por Classe de Área – Brasil – 2016/2018 / Paulo Alentejano / BdF

O gráfico 1 revela que entre 2016 e 2018 o número de imóveis rurais registrados no SNCR aumentou 685.868 unidades em dois anos, um crescimento de 11,9% sobre o total existente em 2016, o que já é um dado impressionante, pois significaria o surgimento de cerca de 340 mil imóveis rurais novos a cada ano, ou 931 imóveis novos por dia.


Gráfico 2 – Área dos Imóveis Rurais (Milhões de ha) – Brasil – 2016/2018 / Paulo Alentejano / BdF

Já quando se observa os dados sobre a área dos imóveis (gráfico 2), o crescimento foi muito maior, com um aumento de 253,7 milhões de hectares (ha), o que corresponde a 32,8%, ou seja, a área dos imóveis rurais aumentou quase 1/3.

Foram 126,8 milhões de ha a cada ano, sendo que o maior crescimento se deu na faixa acima de 15 MF, com uma média anual de 111,8 milhões. Significa dizer que em apenas 2 anos os latifundiários auto declararam ter se apropriado de mais 223,5 milhões de hectares, quase ¼ do território brasileiro!!!

Em termos relativos, o maior crescimento se deu na classe acima de 15 módulos fiscais, com 14% de aumento, como o surgimento de mais de 10 mil grandes propriedades por ano.

Mas o dado mais impressionante (gráfico 3) é que na classe acima de 15 módulos fiscais o crescimento da área atingiu 47,5%, ou seja, quase dobrou!!!

O número de minifúndios (0 a 1 MF) cresceu 11%, mas a área ocupada por esses aumentou apenas 7,6%, o número dos pequenos (1 a 4 MF) aumentou 9,5% e a área 9,2%.

Já no caso dos imóveis médios (4 a 15 MF) o número aumentou 9,9% e a área cresceu 11,5%. No entanto, no caso das grandes propriedades o número cresceu 13,8%, mas a área aumentou 47,4%. Ou seja, as grandes propriedades se apropriaram de 88,1% da variação da área dos imóveis ocorrida entre 2016 e 2018, 223,5 milhões de um total de 253,7 milhões de ha.


Gráfico 3 – Variação do Número e da Área dos Imóveis por Classe de Área (%) – Brasil – 2016/2018 / Paulo Alentejano

Quando consideramos a evolução dos dados do SNCR num período mais longo os problemas tornam-se ainda mais evidentes.

Os gráficos 4 e 5, abaixo, mostram o número de imóveis rurais e a área cadastrada no SNCR nos anos de 2003, 2010, 2016 e 2018. No caso dos imóveis houve um crescimento em todos os anos, mas no caso da área houve um aumento expressivo entre 2003 e 2010, uma pequena redução entre 2010 e 2016, seguida de um grande aumento entre 2016 e 2018.


Gráficos 4 e 5 – Número e Área dos Imóveis Rurais – Brasil – 2003/2018 / Paulo Alentejano

Quando consideramos a variação média anual (gráficos 6 e 7) observa-se que nos sete anos entre 2003 e 2010 o número de imóveis rurais cresceu em média 127 mil por ano; entre 2010 e 2016, o aumento foi de 98 mil por ano, já nos dois anos entre 2016 e 2018, houve um aumento de 340 mil imóveis/ano.

Portanto, no período 2016/2018 tivemos um crescimento 2,7 vezes maior que no período 2003/2010 e 3,5 vezes maior que no período 2010/2016.

Em relação à área dos imóveis rurais houve um aumento de 21,9 milhões de ha por ano entre 2003 e 2010, uma queda de 8,3 milhões por ano entre 2010 e 2016 e um impressionante crescimento de 126,8 milhões de ha por ano entre 2016 e 2018, 5,8 vezes maior que o do período 2003/2010.


Gráficos 6 e 7 – Variação Média Anual do Número e da Área dos Imóveis Rurais – Brasil – 2003-2018 / Paulo Alentejano

Em termos relativos (gráfico 8), isto significa um crescimento de 2,46% ao ano no número de imóveis e de 3,83% ao ano na área entre 2003 e 2010. Nos seis anos entre 2010 e 2016, o crescimento médio anual do número de imóveis foi de 1,72% e a área dos imóveis caiu em média 1,46% ao ano.

Já nos dois anos entre 2016 e 2018, o crescimento médio anual do número de imóveis foi de 5,25%, mais do que o dobro da média anual do período 2003/2010, e mais do que o triplo do período 2010/2016. Em relação à área a diferença é ainda mais espantosa: a média anual de crescimento entre 2016 e 2018 foi quatro vezes maior que o crescimento verificado entre 2003 e 2010.


Gráfico 8 – Variação Média Anual do Número e da Área dos Imóveis Rurais (%) – Brasil – 2003-2018 / Paulo Alentejano

Também impressiona o crescimento da área dos imóveis em relação ao território brasileiro (gráfico 9). Em 2003, a área dos imóveis rurais correspondia a 49,1% da área do território brasileiro. Em 2010 essa proporção passou a ser 67,2% e em 2016 caiu para 61,3%. Já em 2018 atingiu impressionantes 91,1%!!!

Ora, o território Brasil tem 851,5 milhões de hectares, o que significa que em 2016 a área total dos imóveis rurais cadastrados no Incra correspondia a 61,3% da área total do território brasileiro, já em 2018 essa participação aumentou para 91,1%!!! Em dois anos, um aumento espantoso de 30%.


Gráfico 9 – Área dos Imóveis Rurais em relação à Área Territorial do Brasil (%) / Paulo Alentejano

Ocorre que no território brasileiro não existem apenas imóveis rurais, há também áreas indígenas, unidades de conservação, cidades, estradas, rios, lagos, lagoas, hidrelétricas, etc.

Considerando apenas as unidades de conservação terrestres de proteção integral (UCPIs – onde não pode haver imóveis rurais) e as terras indígenas (TIs – onde também não podem existir imóveis rurais) temos um total de 183,4 milhões de hectares.

Mas se somarmos 775,1 milhões de ha (dos imóveis rurais cadastrados no SNCR em 2018) a 183,4 milhões de ha (de UCPIs e TIs) temos um total de 958,5 milhões de ha, uma área 107 milhões de ha maior que a área do território brasileiro!!! Isso, sem contabilizar as áreas das cidades, estradas, lagos, lagoas, hidrelétricas, etc…

A conclusão é óbvia: estão sendo declaradas ao cadastro do Incra como propriedades privadas, pelo menos, 107 milhões de ha de áreas que são públicas! É provável que esse montante seja ainda superior a estes 107 milhões de ha, pois, há, por exemplo, 31,4 milhões de ha de Florestas Nacionais, Estaduais e Municipais que também são áreas públicas e não são UCPIs, mas unidades de conservação de uso sustentável, assim como 15,6 milhões de ha de Reservas Extrativistas e 11,2 milhões de ha de Reservas de Desenvolvimento Sustentável, o que daria mais 58,2 milhões de ha. Portanto, é provável que as irregularidades no SNCR atinjam 165,2 milhões de ha, o que equivalente a 19,4% do território brasileiro e a 21,3% da área auto declarada os imóveis rurais.

Só este fato já seria de extrema gravidade, caracterizando uma gigantesca fraude no cadastro do Incra, que deveria ser objeto de investigação e punição por parte dos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público Federal. Mas, podemos estar diante de algo muito mais grave que a existência de uma mera fraude no SNCR.

No último dia 11 de dezembro, o governo Bolsonaro editou a Medida Provisória (MP) 910/19 que está para ser votada no Congresso Nacional. A referida MP, ao alterar itens das leis 11.952 de 2009, 8.666 de 1993 e 6.015 de 1973, amplia as possibilidades de legalização da grilagem de terras no país, incluindo a possibilidade de regularização de terras em áreas do Incra, o que significa que terras que deveriam ser destinadas para a criação de assentamentos rurais também poderão ser alvo da grilagem. A MP permite a regularização de imóveis com até 2.500 ha na Amazônia.

A mais absurda das medidas propostas pela MP é a da auto declaração como base para a legalização das ocupações irregulares de terra pública. A MP amplia de 4 para 15 módulos fiscais o tamanho da área que pode ser regularizada sem que haja verificação local da situação, sem que seja conferido se há conflito envolvendo a área ou crimes contra a legislação ambiental ou trabalhista.

Basta a apresentação de auto declaração do pretenso proprietário. Vale dizer que o módulo fiscal no Brasil varia de 5 a 110 ha, o que significa dizer que áreas de até 1.650 ha poderão ser regularizadas sem qualquer fiscalização, a não ser que o “proprietário” declare que desmatou irregularmente, que submeteu algum trabalhador a trabalho escravo ou que assassinou alguém em conflito por aquela terra… A probabilidade de tais declarações ocorrerem é mais ou menos a mesma dos dados do SNCR serem confiáveis…

Ora, tudo indica que o aumento exponencial das declarações no SNCR nos últimos dois anos pode servir de base para a auto declaração prevista na MP para que então a grilagem dessas terras públicas seja regularizada.

Por tudo isso, é urgente que a MP 910 não seja aprovada pelo Congresso Nacional e que o SNCR seja imediatamente submetido a auditoria externa para identificar as fraudes em andamento.

* Professor do Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – DGeo/FFP/UERJ e dos Programas de Pós-Graduação em Geografia da FFP/UERJ e em Desenvolvimento Territorial da América Latina e Caribe da Universidade Estadual Paulista – TerritoriAL/Unesp em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes. Coordenador do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Geografia Agrária (GeoAgraria). Integrante do Grupo de Trabalho de Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros das Seções Rio de Janeiro e Niterói.

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