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As leituras do ano de 2019

Fonte http://feedproxy.google.com/~r/lablogatorios/~3/ujFKiuuYZcE/

Ah, as listas de fim de ano.

Tão inescapáveis quanto treta política com parente no jantar de Natal, tão previsíveis quanto cachorro com medo de fogos e tão irresistíveis quanto a segunda taça de espumante. Pois lá vamos nós mais uma vez: seguindo a vetusta tradição iniciada neste condomínio pelo Átila Iamarino, posto aqui um breve comentário sobre os melhores livros que li neste ano, na esperança de que algum deles seja útil para alguém.

Em 2019, como muita gente, busquei refúgio mental na ficção, então há bem pouca coisa sobre ciência aqui. Em se tratando de obras tão diferentes entre si, não dá de fato para classificar em ordem de qualidade, exceto os dois primeiros e o último da lista.

Feitos esses alertas, vamos a ela.

*

 

1984, de George Orwell (Companhia das Letras, 2019)

orwO meu livro do ano de 2019 não é só uma leitura; é a correção de uma falha de caráter, como já escrevi alhures. É inconcebível como eu consegui chegar à idade adulta sem ter lido 1984. O consolo foi enfim fazê-lo no primeiro ano da era Bolsonaro, quando pinceladas da distopia descrita por Orwell aparecem todos os dias no noticiário.

Para as duas pessoas que ainda não leram essa obra-prima, o livro conta a história de Winston Smith, um funcionário público que habita a Londres pós-guerra nuclear, então parte de Oceânia, um superpaís que compreende parte da Europa e as Américas. Oceânia é um regime totalitário perfeito, governado pelo Grande Irmão, uma figura de cuja existência Winston duvida (e nisso consiste um de seus atos de rebeldia contra o sistema). Seus cidadãos são vigiados 24 horas por dia por teletelas, TVs que transmitem propaganda oficial e captam toda a vida íntima da população. A cultura e o amor livre são criminalizados, o ódio ao dissenso é estimulado – com os críticos do regime ganhando um passeio de ida ao Ministério do Amor, a versão orwelliana da Ponta da Praia – e toda a tecnologia que deveria ser empregada na melhoria da qualidade de vida da população é usada para montar a quintessência do aparato de vigilância, a Polícia das Ideias, capaz de detectar pensamentos-crime.

O Partido governante de Oceânia se mantém no poder por graça da falsificação constante não apenas da realidade, mas principalmente do passado. Edições passadas de jornais são permanentemente reescritas para moldar a memória ao que quer que o regime considere adequado naquele momento. Os fatos desaparecem e sobra apenas a narrativa. A elite do partido pratica o chamado “duplipensamento”, que consiste em acomodar na cabeça visões antagônicas de mundo, eliminando o referencial do real (num exemplo hipotético, defender a santidade da família tendo sido casado quatro vezes e admitindo usar verba de gabinete para “comer gente”).

Orwell não viveu para ver o zapzap do Filipe Martins nem os cursos de filosofia do Olavão. Sorte dele.

 

A trégua, de Primo Levi (Abacus, 2013)

leviEm janeiro de 1945, o campo de extermínio de Auschwitz é liberado pelo Exército Vermelho, revelando-se a extensão das atrocidades daquilo que viria a ser conhecido como holocausto. Os sobreviventes, quase todos doentes que não puderam ser evacuados pelos alemães numa marcha fatal durante a fuga, foram levados para campos soviéticos na Polônia. Entre eles estava um jovem químico judeu chamado Primo Levi, que narra nesse livro assombroso sua jornada de mais de um ano de volta à sua Turim natal.

A trégua é continuação do clássico É isto um homem?, a narrativa de Levi de seu período em Auschwitz. É um relato dos primeiros momentos do pós-guerra, numa Europa que ainda não sabe o que fazer com a liberdade recém-conquistada. Levi e as pessoas com quem ele cruza no caminho parecem o tempo todo divididos entre o alívio pelo fim do terror nazista e o pânico de perceber que não há ninguém tomando conta do lojinha. A Polônia pós-ocupação é a tradução perfeita da anarquia, e a sobrevivência não é de forma alguma garantida. Nesse cada um por si, onde não existe nem mesmo dinheiro mais, triunfam ladrões e espertalhões, como se numa constatação de que, no fundo, o problema é a natureza humana.

Levi narra sua viagem francamente surrealista da polonesa Katowice à Itália via Ucrânia e Rússia, com longas marchas por estepes inabitadas tomadas por destroços de guerra e soldados alemães desertores sendo acolhidos pelo Exército Vermelho, que não consegue reproduzir nos territórios liberados o totalitarismo que impera em casa: o campo de refugiados em Katowice é uma prisão, mas qualquer um entra e sai dela a hora que quiser. Os comboios de prisioneiros são ora um troféu para exibir à burocracia em Moscou, ora um fardo com quem os militares precisam dividir a pouca comida que têm e por quem eles acabam se sentindo responsáveis – e até criando afeição. Tragicômico e impossível de largar.

 

A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch (Companhia das Letras, 2013)

guerraA jornalista ucraniana Svetlana Aleksiévitch ganhou o Prêmio Nobel por transformar em alta literatura o princípio mais elementar do jornalismo: ouvir histórias de pessoas. Num trabalho que durou mais de uma década, Aleksiévitch ouviu mulheres que lutaram no Exército Vermelho ou nas brigadas de partisans que resistiram e por fim repeliram a invasão alemã na Segunda Guerra Mundial. Foi atrás das sobreviventes e deixou que elas falassem – em alguns casos, histórias que eram mantidas em segredo até das famílias das combatentes. O resultado é a primeira narrativa feminina da guerra, que mostra uma dupla situação-limite: a do combate e a de ser mulher no combate, com dificuldades que vão das mais triviais (no começo não havia uniformes adaptados a mulheres) até as mais profundas (convencer os pais e os comandantes de que combater os nazistas era um imperativo moral e de que elas eram tão aptas quanto um homem – ou mais aptas, como mostraram as snipers soviéticas, terror do Exército alemão).

A obra de Aleksiévitch ganhou as telas neste ano. Seu Vozes de Tchernóbil, com relatos de sobreviventes e familiares de mortos no desastre nuclear, inspirou personagens da série Chernobyl, da HBO. Leia o livro e assista à série.

 

O oráculo da noite, de Sidarta Ribeiro (Companhia das Letras, 2019)

sid(Disclaimer: o autor é meu amigo, o que depõe contra ele, mas não contra a obra.)

Anos atrás, visitei Sidarta Ribeiro em Natal e caí na besteira de criticar Freud na frente do neurocientista brasiliense. Sidarta abriu o computador e começou a mostrar uma série de dados experimentais que confirmavam insights do pai da psicanálise sobre a origem e as funções cognitivas do sonho. Um ponto do sermão ficou na minha memória: os dados de neuroimagem que confirmam a afirmação freudiana de que sonhos são restos diurnos embaralhados no cérebro.

Neste livro monumental, Ribeiro amplia a reabilitação de Freud, mas vai além: mostra como o sono e os sonhos ajudaram a moldar a cognição humana, resumindo décadas de pesquisas sobre o tema, inclusive os estudos pioneiros dele próprio e de seus colegas.

Sem poupar o leitor das evidências neurocientíficas e da descrição dos experimentos que embasam sua argumentação, Ribeiro afirma que os sonhos foram objeto de seleção natural ao ajudarem a consolidar memórias e ao produzir simulações de estados físicos para as quais mamíferos possam se preparar estando num ambiente seguro e em repouso. O caçador pré-histórico sonha com o mamute abatido, a presa sonha com o leão. A produção dessas simulações mentais deram aos sonhos o caráter oracular que lhes era atribuído na antiguidade.

Com uma erudição enorme e algum humor, transitando por episódios autobiográficos e por tretas pesadas entre rivais científicos, o Oráculo conduz o leitor a um passeio pela história humana, narrando casos de sonhos e sonhadores famosos, de reis da Mesopotâmia a guerreiros lakota do Oeste americano. Dialoga também com a insônia, esse mal da vida contemporânea que priva a um número crescente de pessoas do sonho. E convida-o a retomar o hábito antigo de fazer “sonhários” – lembrar-se de seus sonhos e registrá-los. Por fim, Ribeiro molha o tornozelo do leitor no campo emergente do uso terapêutico de drogas psicodélicas, que induzem estados semelhantes ao sonho. Tema para mais um livro.

 

O novo iluminismo, de Steven Pinker (Companhia das Letras, 2019)

pinkerO novo calhamaço do psicólogo canadense autor de Como a mente funciona é uma defesa dos princípios que nos deram o mundo tal qual o conhecemos hoje: a razão, a ciência, o humanismo e o progresso. Já resenhei a obra aqui e não vou ficar me repetindo. Apenas recomendo-a.

Ao longo do ano passado e deste apareceram críticas ao livro de Pinker. Os críticos dizem, não sem razão, que ele faz uma apologia do capitalismo e da ordem liberal, varrendo para debaixo do tapete a desigualdade extrema produzida por essa mesma ordem – que está na origem dos movimentos neofascistas que vicejam de Washington a Brasília. Mas o ponto central do livro segue válido: a tétrade iluminista tem uma longa lista de bons serviços prestados à humanidade – inclusive a pesquisa médica que permitiu que boa parte das pessoas vivas hoje não tenha morrido de diarreia ou alguma infecção bacteriana banal na infância. E que o legado iluminista precisa ser defendido diante da maré obscurantista que parece tomar conta do mundo.

 

O clube dos jardineiros de fumaça, de Carol Bensimon (Companhia das Letras, 2018)

bensimonO livro da gaúcha Carol Bensimon sobre uma história de amor ambientada na região produtora de maconha na Califórnia ganhou o Prêmio Jabuti de melhor romance de 2018 – e mereceu. A obra fala de Arthur, um professor que resolve plantar maconha em casa em Porto Alegre para ajudar no tratamento de câncer da mãe e por uma série de razões vai parar em Mendoncino, no chamado Emerald Triangle, a versão americana do Polígono da Maconha. Ali conhece Tamara, uma garçonete com uma vida amorosa pregressa conturbada, e seu pai, Dusk. Arruma um trampo numa plantação podando camarões. Trava contato com o lado bandido do cultivo. E é meio isso.

Não acontece muita coisa na história, mas a ambientação de Bensimon (com um leve subtexto antiproibicionista que permeia todo o livro em forma de histórias da guerra contra as drogas) é tão perfeita e seus personagens são tão humanos que o livro se torna mais viciante que aquele skunk que você fumou em Amsterdã e com o qual sonha até hoje.

 

Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Zahar, 2018)

ziblattO buzz, afinal, tinha razão de ser. Em 2018, dois professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, viraram best-sellers no Brasil com um livro que buscava explicar o que eles chamam de “recessão democrática”, a ascensão de autocratas que fazem uso dos mecanismos da democracia para chegar ao poder e então subvertê-la. O livro fora feito, evidentemente, pensando no caso de Donald Trump, mas a eleição de 2018 e a ascensão de Jair Bolsonaro forneceram à dupla um estudo de caso em tempo real.

Como as democracias morrem mostra como autocratas eleitos da estirpe de Trump, Bolsonaro e Viktor Orbán implantam regimes antidemocráticos sem recorrer ao método old school do golpe militar. O controle da mídia, a perpetuação no poder, a entrega do Estado a compadres e a erosão das liberdades, porém, são os mesmos de qualquer ditadura.

O livro apresenta um teste rápido de identificação de autocrata, que consiste em uma combinação de um ou mais dentre quatro fatores. Jair Bolsonaro se enquadra em todos: 1) Rejeitar, no ato ou o discurso, as regras democráticas do jogo (como fez Bolsonaro quando disse que não aceitaria nenhum resultado diferente de sua vitória); 2) Negar a legitimidade de oponentes (“vermelhos na ponta da praia”, “fim de todo ativismo”, vocês escolhem); 3) Tolerar ou encorajar a violência (“não te estupro porque você não merece”, “Ustra vive”); e 4) Indicar disposição para restringir liberdades de oponentes e da mídia (“Brasil sem Folha de S.Paulo”, ameaças à concessão da Globo, fim da publicação de editais em jornais para sufocar o Valor). A democracia no Brasil não está ameaçada; ela já foi comprometida.

 

Pornopopeia, de Reinaldo Moraes (Objetiva, 2008)

pornopsMarcos Nobre uma vez disse que Reinaldo Moraes inventou a prosa paulistana. Não sei se é verdade – talvez Oswald de Andrade pudesse ter outra opinião. Mas certamente Moraes inventou a prosa em paulistano. Se alguém duvida tratar-se de um idioma próprio, basta ler Pornopopeia. O narrador e protagonista do livro, Zeca, é um paulistano que se expressa em paulistano castiço, com todas as abreviações (“Sossô”, “computinha”) e todos os italianismos (“que bronhão, amice!”) a que tem direito.

Cineasta fracassado, morando na produtora que montou de favor num imóvel do do cunhado em Higienópolis, Zeca se mete numa confusão homérica enquanto procrastina para fazer um frila em plena guerra da polícia com o PCC, em 2006. É um personagem sem superego nenhum, que está sempre em busca do próximo rabo de saia, da próxima carreira de pó, do próximo baseado e da próxima “breja”. É um tiozão canalha e egoísta que resume sua vida a satisfazer seus sentidos – do qual o leitor não sabe se sente raiva, pena ou inveja.

A quem quiser se aventurar, um alerta: Pornopopeia é um livro sem censura. Nenhuma. Os excessos de Zeca, hilários, podem chocar muita gente, e desconfio de que o autor dê risadinhas internas a cada cena em que os leitores fazem uma careta e dizem “mas não é possível!” ou “caralho, que nojo!”.

 

Miles, an autobiography, de Miles Davis e Quincy Troupe (Simon&Schuster, 1989)

milesEsqueça a música por um instante. A autobiografia deliciosa de Miles Davis (que teve uma única edição brasileira) é, antes de qualquer coisa, um livro sobre racismo. Dono de uma carreira longeva, que foi da Segunda Guerra até sua morte, em 1991, Miles participou de momentos decisivos na história da música ocidental, do surgimento do bebop até os excessos eletrônicos dos anos 1980, passando pelo que talvez seja sua grande contribuição, o cool jazz. Nesse período, também testemunhou mudanças na relação da sociedade americana com os negros, da vigência das leis de segregação no sul até a conquista dos direitos civis.

Mesmo vindo de uma família abastada de East Saint Louis (seu avô, Miles Davis, foi o primeiro negro a ter uma fazenda no Estado, e seu pai, Miles Davis II, era um conceituado dentista), Miles experimentou a segregação racial e fez do orgulho negro a tônica de sua vida (além de uma birra injustificada com o genial Chet Baker só porque este era branco). Há passagens dramáticas, como a prisão em Nova York após uma briga com um policial branco que aparentemente não tinha entendido que o crioulo que ele tentava enquadrar na saída de um teatro era o mesmo sujeito cujo nome brilhava no letreiro do teatro. E outras hilárias, como a ocasião em que Miles foi visitar sua amante, a atriz francesa Juliette Gréco, no hotel Waldorf-Astoria, acompanhado de um colega músico. “Não acreditaram quando dois crioulos apareceram no hotel numa Ferrari, e você deveria ter visto a cara do filho da puta do recepcionista quando os mesmos crioulos pediram para ligar para a suíte daquela atriz francesa famosa e ela os mandou subir”, relembra Miles, em sua prosa peculiar, na qual motherfucker pode ser tanto “filho da puta” quanto simplesmente “cara”, bad em geral conota alta habilidade ou beleza e bad as a motherfucker é um elogio reservado a pouca gente, como John Coltrane (“Trane was bad as a motherfucker”), Wayne Shorter ou Prince.

Para quem gosta de jazz, é um livro para ler com o Spotify ligado e passear por cinco décadas da história do estilo, ouvindo a discografia de Miles e seus companheiros, gigantes como Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Charles Mingus e Bud Powell.

 

Máquinas com eu, de Ian McEwan (Companhia das Letras, 2019)

maquinasNão costumo ler ficção científica. Peguei esse livro do McEwan para ler numa viagem longa de avião torcendo o nariz, só porque ele pesava pouco na mochila – e devorei. A história é sobre as relações entre um londrino desocupado, sua vizinha universitária e um androide que ele compra num surto de curiosidade e que, claro, revela-se autoconsciente e cheio de dramas existenciais. O drama se passa em 1982 e parte de uma premissa genial: Alan Turing, pai da computação, não se matou nos anos 50 após ser condenado a um tratamento para “curar” sua homossexualidade. Portanto, a revolução dos computadores e da inteligência artificial acontece décadas antes.

O livro de McEwan é assombroso pelas reflexões que capta no Zeitgeist sobre inteligência e aprendizado de máquinas, mas também pelos conflitos humanos que ele explora magistralmente em sua obra e que escritores de ficção científica nem sempre conseguem. Para os fãs do escritor britânico, uma dica: o tema da reparação está muito presente.

 

A Zona morta, de Stephen King (Suma de Letras, 2017)

zonaSe houvesse o equivalente literário daquele quadro “Gosto, sim, e daí?” do João Marcelo Bôscoli, Stephen King seria minha escolha. O povo sério chama o escritor americano de “subliteratura”, estereotipada, cheia de clichês e com personagens rasos. Eu prefiro chamar de “magistral”. Atire o primeiro absorvente no chuveiro quem não se arrepiou com Carrie, a estranha, O iluminado ou o recentemente refilmado It. King é indissociável da cultura pop contemporânea, a ponto de receber citações desde os Ramones (Pet Sematery) até os Simpsons (a redoma sobre Springfield)

Feito o nariz-de-cera, peguei Zona Morta para ler por diversão numa folga de meio de ano e acabei descobrindo paralelos arrepiantes com – sempre ele – o governo Bolsonaro. No livro de King, John Smith descobre que tem habilidades paranormais após sofrer um acidente que o deixou anos em coma. Ele pode ver o futuro ao encostar nas pessoas, o que se torna dramático após apertar a mão de um político em ascensão chamado Greg Stillson.

Stillson é uma caricatura do político perigoso – inescrupuloso, cruel, truculento e com grandes ambições. Os paralelos com Ricardo Salles ficarão evidentes para quem ler.

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