“A gente tá passando por uma grande crise, mães desempregadas, filhos fora da escola. Essa epidemia aí, né, assim a gente tá ficando sem saída”, desabafa Vitória Marques, líder comunitária e promotora legal dos direitos das mulheres, da Associação de Mulheres Unidas pela Esperança (AMUE), do Morro da Polícia, localizado na zona leste de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.
O relato de Marques é um entre os inúmeros que o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Estado do Rio Grande do Sul (Consea-RS) tem recebido desde o dia 28 de março cpm o diagnóstico de pessoas em estado de fome. As redes de solidariedade que auxiliam no recolhimento de alimentos não têm conseguido suprir a demanda, que só aumenta.
“A fome está batendo na porta, em outras residências ela já invadiu, outras ela reside, não quer sair… Tem gente que engana a fome com copo d’água, outras com maracujá, que eu tô distribuindo aqui. É o que tem”, completa Marques.
Depois de chamar a pandemia de “gripezinha”, de propor o isolamento vertical e estimular o fim do isolamento social, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez nesse domingo (5), uma convocação para um jejum religioso,em rede nacional, para o país superar a crise desencadeada pelo novo coronavírus.
Na quinta-feira (2), Bolsonaro já havia convocado o jejum como forma de combater o “mal”. Ainda no sábado, em sua rede social, postou um vídeo no qual ele e vários pastores reforçam o pedido de ficar um dia sem comer.
Segundo Leonardo Ferreira Pillon, advogado e conselheiro do Consea, representante do Fórum Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável (Fesans-RS), a fome no estado alcançou um patamar “muito grave”. “Reunimos dados do dia 28 até o dia 3 de abril, tinha 351 formulários, de sexta para sábado, já são 491. Cada formulário de 5 a 50 pessoas, até mais de 50, que representa o impacto”.
Diante dos inúmeros relatos e pedidos urgentes de auxílio, o Consea elaborou o relatório “Câmara dos Povos e Comunidades Tradicionais sobre Estado de Fome durante o surto de coronavírus no território do Rio Grande do Sul”. O documento, que foi encaminhado para a Ordem dos Advogados do Brasil e à Defensoria Pública da União e Estadual, segundo Pillon, não representam a totalidade das situações faméricas, pois os relatos e dados são aportados com cada vez mais frequência em um número crescente.
Os dispositivos legais como a Lei Federal 9.077/1995, que autoriza a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a realizar a doação direta dos estoques públicos de alimentos a pessoas em situação de fome ou miséria, ou mesmo programas como o Bolsa Família, na prática estão se provando ineficazes. Soma-se a isso, aponta o documento, o insucesso nas tratativas com a Secretaria Estadual de Assistência Social nas reuniões e a falta de sinalização do governo federal, até então, de abertura de crédito extraordinário para ações específicas de segurança alimentar e nutricional no Rio Grande do Sul, mesmo após inúmeras manifestações da sociedade civil organizada.
Na ausência de um Estado atuante, as casas de matriz africana, agentes das comunidades e sociedade civil, têm atuado na arrecadação e distribuição de alimentos. São as comunidades carentes, desempregadas, com trabalhos informais, que têm em grande parte a predominância feminina, que estão impossibilitadas de prover o sustento da família, por conta do isolamento social e a falta de recursos.
Povos tradicionais diante da pandemia
De acordo com o relatório, os povos tradicionais de matriz africana representam um percentual significativo no Rio Grande do Sul. As autoridades tradicionais, que são representações de lideranças dentro das UTTs (Unidades Territoriais Tradicionais 1 – casas de axé), são as únicas empreendedoras da comunidade, tendo como ofício suas atividades tradicionais, de onde retiram seu sustento e de todos os residentes da UTT. A região Metropolitana tem mais de 20 mil UTTs.
O relatório elaborado pelo Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSANPOTMA), aponta que nas 491 unidades cadastradas até o momento, existe, em média, cinco a sete pessoas em cada unidade. 35% delas são de idosos (na faixa de risco), além de 21% de crianças e menores de 16 anos.
Ainda de acordo com o relatório, o número total de pessoas que necessitam com urgência de gêneros alimentícios e material de higiene, são de aproximadamente 1.800 pessoas. “É imprescindível a regularização e cadastramento no cadastro único desses núcleos familiares, pois a maioria dessas pessoas não está cadastrada seja por terem enfrentado obstáculos administrativos ou culturais, de modo que os números do cadastro único não refletem a realidade dos povos e comunidades de matriz africana”.
Conforme explica a coordenadora executiva do Fórum de Porto Alegre e conselheira do Consea-RS, Itanajara Almeida, essa população têm como principal meio de sobrevivência suas práticas tradicionais. Cabe destacar que encontros tradicionais estão restritos por conta da quarentena instalada no estado.
Em suas UTTs, casas de santo, terreiros, os povos realizam atendimentos à população que busca conforto espiritual. “Há as mulheres que são artesãs e muitas trabalham em empregos domésticos, produzem roupas para serem usadas em vários eventos tradicionais”, diz. “Com a pandemia provocada pelo coronavírus, os decretos acabam por limitar algumas atividades que realizavam para seu sustento. As famílias estão vendo suas reservas acabando e por consequência estão sem a previsão de terem qualquer forma de buscar os alimentos fora, pois o isolamento os impede de saírem”, afirma.
Como forma de alentar esse cenário, Itanajara diz que estão sendo feitas ações isoladas para que os mais necessitados possam ter alimento para o dia seguinte. “Sabemos que é insuficiente, pois a cada dia temos mais pedidos de socorro. Pedimos ajuda a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que nos ajudem a sensibilizar as autoridades que têm essa possibilidade de realizar essa distribuição de alimentos”.
Insere-se nesse contexto a questão da suspensão do abate tradicional, cerimonial (em 2019, o STF deu aos povos tradicionais de matriz africana o direito de promover o abate para a sua alimentação, das suas divindades e da sua comunidade), em razão das medidas sanitárias, e de combate ao coronavírus. “Isso interfere diretamente na segurança alimentar dessas comunidades, afeta a soberania alimentar. Ele é estruturante”, destaca Pillon.
De acordo com Itanajara, as ações da prefeitura têm efeito irrisório. “Se pegarmos o exemplo das 200 cestas básicas que uma Unidade Territorial Tradicional pode receber e compararmos com o número de pessoas que eram atendidas nos abates tradicionais, essa ação isolada da prefeitura corresponde a menos de metade de um abate tradicional semanal”, exemplifica.
Na sexta-feira (3), a Prefeitura de Porto Alegre distribuiu 8 mil cestas básicas. Segundo Itanajara, mesmo que tudo isso fosse entregue somente para os povos e comunidades tradicionais de matriz africana, chegaria ao equivalente a 100 abates tradicionais. “Nós realizávamos, no mínimo, 20 mil abates tradicionais por mês para alimentar nossos povos e comunidades. São 8 milhões de refeições ao mês que não estão mais sendo acessadas porque esses abates estão interrompidos até que possamos voltar a ter a nossa liberdade de culto novamente”.
Para Pillon, é preciso garantir acesso ao alimento em primeiro lugar para depois discutir política pública. “Não tem como discutir política pública e formação disso se as pessoas vão ficar passando fome por mais dias até essa política pública sair. As ações governamentais têm sido muito lentas em relação ao ritmo do agravamento da situação, e essa inoperância vem causando na vida concreta das pessoas um sofrimento que não pode ficar submetido ao tempo de uma solução burocrática”. Segundo o advogado, os conselhos municipais de Segurança Alimentar têm um papel fundamental no programa de arrecadação de alimentos. “Programa que precisa ser fortalecido agora, porque é o programa que efetivamente dá acesso à alimentação das pessoas”.
Comitê de Combate à Fome
Na tarde da última quinta-feira (26), foi constituído o Comitê Gaúcho de Emergência no Combate à Fome, através de uma webconferência mobilizada pelo Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (Consea-RS). Diversas organizações da sociedade civil, da academia e representantes dos governos estadual e federal debateram a urgência de ações que possam garantir a segurança alimentar dos gaúchos frente a covid-19.
O objetivo do Comitê, em caráter emergencial, é prover mantimentos aos povos tradicionais, dar assistência a pessoas em situação de rua, evitar o desperdício de colheitas dos agricultores familiares, alimentar escolares e manter a qualidade nutricional da população com alimentos saudáveis e acessíveis.
Medidas propostas no relatório do Consea/RS:
a) a imediata doação de alimentos dos estoques públicos e imediata aquisição com doação simultânea de alimentos para as pessoas cadastradas nos formulários de busca ativa criados pela FONSANPOTMA-RS no âmbito das ações do Comitê Gaúcho Emergencial no Combate à Fome do Consea-RS, com distribuição dos alimentos pela FONSANPOTMA e pelos Comitês Municipais da Ação da Cidadania no Combate à Fome e à Miséria, conforme procedimentos de doação direta dos estoques públicos de alimentos a pessoas em situação de fome ou miséria autorizados na Lei Federal 9.077/1995;
b) que seja instada a fazer imediatamente a Companhia Nacional de Abastecimento – Conab no sentido de oferecer apoio técnico aos órgãos e entidades compradores, adquirindo alimentos com recursos da União via Compra Institucional do Programa de Arrecadação de Alimentos (art. 1º, §2º do D. 8.473/2015) que é a “compra da agricultura familiar, por meio de chamada pública, para o atendimento de demandas de gêneros alimentícios ou de materiais propagativos, por parte de órgão comprador e, nas hipóteses definidas pelo GGPAA, para doação aos beneficiários consumidores” (modalidade descrita no inciso V do art. 17 do Decreto nº 7.775, de 4 de julho de 2012), abstendo-se de os Municípios e Estado converter o alimento em auxílio em dinheiro, e observando a previsão legal de 30% de compra de alimentos produzidos por atividades e empreendimentos sustentáveis da agricultura familiar (art. 3º c/ art. 1º, §§ do Decreto 8.473/2015; art. 4º, II da Lei 11.326/2006; Resolução ConamONAMA 425/2010; Lei 12.512/2011);
c) a regularização e cadastramento no cadastro único do governo federal dos núcleos familiares dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, pois a maioria dessas pessoas não está cadastrada seja por terem enfrentado obstáculos administrativos ou culturais de modo que os números do cadastro único não refletem a realidade dos POTMA;
d) que as compras de alimentos observem o Programa Estadual de Contratações Públicas Sustentáveis no âmbito da Administração Pública Estadual instituída pelo Decreto nº 51.771, de 29 de agosto de 2014, em especial a proibição de utilização de alimentos geneticamente modificados na compra de alimentos e a priorização da produção orgânica, sem uso de fertilizantes sintéticos, agrotóxicos e adubos químicos, permitindo a aquisição da produção agroecológica e da criação de animal sem uso de substâncias químicas artificiais ou tóxicos conforme art. 6ºe 7º;
e) que as cestas básicas levem em consideração os parâmetros da última versão da Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde.