Ir à escola já era um desafio diário para muitas crianças refugiadas em todo o mundo. Agora, há o temor de que algumas não retomem os estudos depois que os bloqueios pela COVID-19 forem suspensos. Isai* ficou dois anos sem estudar enquanto sua família tentava não ser afetada por conflitos sociais no seu país natal, a Nicarágua. Eles precisaram fugir para Honduras e depois para a Guatemala.
Aos oito anos, Isai finalmente conseguiu voltar para a sala de aula no início do ano letivo da Guatemala, em janeiro deste ano. Sua mãe, Lisseth*, contou que quando ele começou a fazer amigos, a COVID-19 atingiu o país e o governo ordenou o fechamento de todas as escolas.
“Ele tinha apenas dois meses de experiência na vida escolar quando tudo desmoronou”, disse Lisseth. “Ele está muito triste e angustiado. Para ele, é como se estivesse na Nicarágua novamente.”
Mesmo antes da pandemia de coronavírus bloquear o acesso às escolas no mundo todo e interromper as aulas de quase 1,6 bilhão de estudantes, as salas de aula já estavam fechadas para milhões de crianças refugiadas, segundo o UNICEF.
Menos da metade das crianças refugiadas em idade escolar estavam matriculadas, enquanto apenas uma em cada quatro cursava o ensino médio. A paralisação de atividades escolares por meses pode colocar em risco pequenos ganhos recentemente adquiridos na maximização do acesso à educação para crianças refugiadas.
Para a chefe de educação da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), Rebecca Telford, há um grande risco de que as desigualdades na educação aumentem. “Embora muitos países tenham agido rapidamente para implementar programas de ensino à distância, foram poucas as iniciativas direcionadas para garantir acessibilidade aos refugiados”.
“A questão é sobre o acesso e se as pessoas têm um celular ou outro dispositivo em casa. As famílias também podem não conseguir pagar por uma conexão de internet. Muitos campos de refugiados estão em áreas remotas sem sinal FM das estações de rádio nacionais, por exemplo. Assim, as crianças não têm como ouvir nem mesmo transmissões de aula via rádio”, disse a chefe de educação do ACNUR.
Desde que as escolas fecharam na Jordânia, em meados de março, Mustafa e Sherin, refugiados da Síria que moram no leste de Amã, tiveram que estabelecer um cronograma para garantir que cada um de seus cinco filhos usasse a TV e o celular da família para fazer as tarefas da escola.
O ministério da educação da Jordânia está transmitindo aulas na TV e as empresas de telefonia estão fornecendo dados gratuitos para acessar uma plataforma de aprendizado online, mas Mustafa disse que teve que comprar dados adicionais para o WhatsApp, aplicativo que os professores de seus filhos usam para enviar vídeos. O gasto adicional com dados obrigou a família a reduzir outras despesas.
O isolamento também impediu Mustafa de ganhar a vida como habitualmente fazia: coletando plástico e metal descartados para reciclagem. A esposa Sherin não conseguiu continuar trabalhando como diarista. A família conta com os 150 dinares da Jordânia (cerca de R$ 1.235) em assistência financeira que recebe mensalmente do ACNUR para continuar para comprar comida e pagar o aluguel. No entanto, este apoio não está disponível a todas as famílias de refugiados.
Vinte e três por cento dos refugiados sírios que vivem na Jordânia não têm acesso à internet em casa e 46% dos entrevistados em uma pesquisa recente disseram que seus filhos não estavam acessando a plataforma online de aprendizado do governo.
Embora crianças de famílias de baixa renda nas comunidades de acolhimento sejam igualmente afetadas pela desigualdade de acesso digital, as crianças refugiadas, que muitas já se ausentaram da escola por longos períodos, passam pelo agravante de perder assistências adicionais muito necessárias em suas escolas, como aulas de idiomas e apoio psicossocial.
Após o fechamento das escolas na Bulgária, as crianças refugiadas inicialmente lutaram pelo acesso à educação online, em parte porque não possuíam dispositivos, mas também devido à barreira do idioma, de acordo com Borislav Grozdanov, coordenador de informações públicas do ACNUR na Bulgária. O Conselho de Mulheres Refugiadas e a Cruz Vermelha Búlgara estão agora fornecendo laptops e tablets doados a famílias de refugiados. Outra ONG, a Caritas Sofia, está oferecendo também cursos de idiomas online.
“Todos os meus cinco filhos estão participando dos cursos de idiomas online”, disse Wisam, refugiado da Síria que agora vive na capital búlgara. “Estou muito feliz por eles continuarem praticando a língua. Mas os cursos online não podem substituir a escola. Meus filhos querem voltar para a escola porque sentem falta dos amigos e dos professores”.
Manter as crianças nas escolas em Honduras, país assolado por gangues, é visto também como uma segurança, um esforço para evitar mais violência e deslocamentos. Nas áreas urbanas hondurenhas, onde as crianças são frequentemente recrutadas ou alvo de gangues criminosas, as escolas são um dos poucos lugares onde elas podem se sentir protegidas.
“A escola pode salvar as crianças das gangues”, disse Luis*, diretor de uma escola em uma área de baixa renda de Tegucigalpa, capital do país da América Central. “Não somos apenas professores: somos psicólogos, conselheiros, guias”.
Ele explica que, desde que as escolas fecharam, seus alunos estavam lutando para acompanhar as aulas em casa, pois muitos não podiam pagar planos de internet e não tinham aparelhos de TV que lhes permitissem acompanhar as transmissões educacionais do governo.
A meio mundo de distância, em Bangladesh, as crianças refugiadas rohingya, que vivem em assentamentos espalhados por Cox’s Bazar, já tinham acesso limitado à educação antes mesmo do isolamento entrar em vigor no mês passado como uma medida de saúde pública para limitar a disseminação da COVID-19. Escolas em todo o país fecharam, bem como centros de aprendizagem nos campos.
Grupos de ajuda estavam se preparando para lançar um programa-piloto que permitiria que as crianças nos assentamentos começassem a aprender com a grade escolar de Mianmar pela primeira vez, após a aprovação bem-vinda do governo de Bangladesh em janeiro. Enquanto isso, centenas de centros informais de aprendizado temporário estavam oferecendo educação básica e uma chance para as crianças esquecerem as lutas diárias que enfrentam nos campos superlotados.
Babu Nisa, assistente de ensino para refugiados em um dos centros de aprendizado, disse que seus alunos ficaram “muito chateados” quando souberam que o fechamento dos centros faria parte do isolamento.
“Os centros de aprendizagem não são feitos apenas para estudos”, disse ela. “As crianças crescem aqui. Aqui, elas aproveitam seus lanches, seu tempo, além das aulas. Os abrigos são congestionados, são lugares onde as condições de vida não são favoráveis para os alunos estudarem adequadamente”.
Uma vez que as limitações contínuas à internet móvel nos abrigos tornam impossível o aprendizado online, o ACNUR e seus parceiros distribuem diretrizes para pais e responsáveis para ajudar as crianças a aprenderem em casa. Além disso, defende que a conectividade seja restabelecida nos campos e arredores das comunidades de acolhimento. Babu e seus colegas também estão tentando visitar seus alunos que moram perto.
“Nós os motivamos para que eles não percam a esperança e se sintam tristes. Eles gostam de estudar, mas em casa não podemos garantir um ambiente adequado de estudo para eles”, disse ela, explicando ainda que muitos pais são incapazes de ajudar seus filhos porque não são alfabetizados.
Além de desenvolver e distribuir materiais de aprendizagem impressos, o ACNUR está trabalhando com governos locais e ONGs parceiras para apoiar professores, pais e alunos enquanto as escolas permanecem fechadas. Em vários países, isso significou continuar pagando incentivos aos professores refugiados e ajudando-os a se adaptar à nova realidade permeada pela tecnologia digital.
Robert Kinyanjui, professor de ensino médio no campo de Dadaab, no Quênia, disse que os professores estão usando vários métodos para garantir que o aprendizado continue, incluindo realização de aulas através de grupos do WhatsApp, transmissões de rádio e até gravações de áudio.
Ele acrescentou que os estudantes nos campos continuam ansiosos para aprender e aproveitar todas as oportunidades disponíveis, apesar dos desafios. “Acompanhamos os alunos cuja participação no programa de educação alternativa é fraca”, afirmou.
Em países onde o aprendizado online é menos disponível, como no Sudão do Sul e no Níger, o foco tem sido a distribuição de pacotes de auto-estudo e rádios para que as crianças refugiadas possam acompanhar as lições transmitidas pelas estações comunitárias.
Jennifer Roberts, diretora sênior de educação do ACNUR, disse que o fechamento de escolas provocou algumas inovações na prestação de serviços de apoio educacional e no uso de tecnologia digital que podem ser inestimáveis à medida que as escolas começam a se preparar para reabrir com segurança. “Responder à pandemia nos dá a oportunidade de recuperar e desenvolver melhor a resiliência dos sistemas”.
As lições aprendidas com o fechamento prolongado de escolas em outros momentos, como durante o surto de Ebola na África Ocidental, mostram que as adolescentes correm maior risco de ficar para trás e não voltarem quando as escolas reabrirem.
“Precisamos começar a pensar agora em intervenções personalizadas para apoiá-las”, disse a diretora sênior de educação do ACNUR, acrescentando que os clubes de recuperação para meninas foram usados com sucesso após o fechamento de escolas por conta do Ebola.
Luis, diretor de uma escola em Tegucigalpa, enfrenta um problema ainda mais grave. Uma das gangues que aterroriza a área aproveitou o fato de a escola estar vazia para fazer dela a sede de suas operações. “Estou preocupado que eles não a devolvam mais”, disse ele.
*Nomes alterados para proteger os entrevistados