Fonte https://www.huffpostbrasil.com/entry/jamal-suleiman_br_5ebcbae9c5b688822a572edd
Nas redes sociais, o infectologista Jamal Suleiman tem sentido a ira dos que embarcam na versão de que o novo coronavírus é uma gripe simples, uma criação em laboratório chinês – ou pior ainda, que não existe e tudo ao redor é uma grande armação. “Filho da puta é do que muitos me chamam nas redes sociais. Bloqueio, denuncio, bloqueio e denuncio”, conta o profissional do Hospital Emílio Ribas, referência em São Paulo no combate à covid-19.
Na tentativa de explicar o chamado negacionismo (nome dado à negação de uma realidade incômoda, apesar das evidências verificáveis de que ela existe), o infectologista aponta a desinformação e a necessidade de achar culpados – no caso, os médicos, que na cabeça dessas pessoas estariam escondendo hospitais vazios. “Não é buzinar na porta dos hospitais que trará essas respostas”, opina, em referências às carreatas em defesa do fim do isolamento social organizadas na capital paulista próximo a hospitais.
Em entrevista à Esquinas, o infectologista fala da influência de Bolsonaro na crise, da importância da quarentena e da dificuldade de estar na linha de frente do combate à pandemia.
Esquinas: Muitas pessoas imaginam que as notícias reais sobre a pandemia e seu avanço são exageradas porque não foram afetados pessoalmente e nem veem pessoas agonizando pelas ruas. É correto dizer que o drama da covid-19 se dá nos hospitais?
Jamal Suleiman: É extremamente anômalo que alguém simplesmente morra na rua porque foi abandonado à sua própria sorte com a doença. Não é uma característica brasileira. Primeiro, porque o Brasil tem um Sistema Único de Saúde, o SUS, em que todo indivíduo que precisar tem acesso à estrutura hospitalar. Segundo, porque mesmo que as estruturas estejam completamente lotadas, nosso País tem uma prática de acolhimento.
Há muita gente que ainda desdenha do novo coronavírus?
Eu fiquei de plantão no fim de semana de 2 a 3 de maio e, só pra você ter uma ideia, todos os dias teve buzinaço na porta do hospital… Para eles, o Emílio Ribas estava vazio. A verdade era o contrário: estávamos com 100% da capacidade ocupada.
Por que o isolamento social não foi seguido à risca pela população?
O que aconteceu foi que não teve um dia sequer que o presidente da República não tentou desconstruir essa abordagem de segurança, que é mundial, apoiada em evidências científicas e referendada pelo próprio Ministério da Saúde. Como é que a população vai seguir alguma recomendação quando se tem saindo de um mesmo foco [o governo federal] duas informações antagônicas? Na cabeça de alguém sem domínio técnico da gravidade da situação, qual você acha que será a verdade que essa pessoa seguirá? Muitas vezes, segue a mais confortável: sair para rua, se aglomerar, desrespeitar as normas.
Não é de agora o assédio contra epidemiologistas, infectologistas e profissionais de saúde em decorrência do negacionismo. Como o senhor tem lidado com isso?
Eu gosto de dizer que tenho duas mães, a mãe que me criou e que eu amo de paixão, que também está de saco cheio do isolamento, que acha que a abandonei… E aquela que é puta, que é do que muitos me chamam nas redes sociais e até quando me veem na rua. Filho da puta virou elogio. É disso pra baixo. Eu bloqueio, denuncio, bloqueio e denuncio. Você vê que em alguns casos é por falta de informação. Em outros, é porque precisam descontar em alguém. Se as pessoas estão buscando respostas, não é buzinar na porta do hospital que trará essas respostas. Muito menos duvidar da única medida que nós temos [o isolamento social]. Essa dúvida mata.
E a visão oposta — que considera os profissionais de saúde heróis?
Eu não sou herói. Não nasci para ser herói, meu objetivo não é ser um herói. Eu só quero ser alguma coisa para minha neta, só quero fazer meu trabalho.
São atitudes humanas que expõem você ao risco de contaminação e não a picada de um mosquito.
Entre os negacionistas, há ainda a comparação da covid-19 com outras doenças que também causam muitas mortes. A ideia é exemplificar que não há tantos óbitos assim… Faz sentido?
Eu vejo bastante gente perguntando, por exemplo: “Por que não se falam dos mortos pela dengue?”. É incomparável. O SARS-CoV-2 é um vírus que rompeu a barreira de sua própria espécie. Toda a raça humana nunca foi exposta a essa doença. O impacto é muito maior. Por isso ele é tão grave. No começo, os mais afetados eram pessoas acima de 60 anos. Depois a gente começou a ver que não era só isso, que outras pessoas começaram a ser afetadas, e todo mundo pode morrer.
A forma de contágio também não é comparável…
Exato. São atitudes humanas que expõem você ao risco de contaminação e não a picada de um mosquito. Quando a gente fala que tem que ter uma distância de 1 metro a 2 metros entre as pessoas, é porque quando a gente fala, expelimos uma quantidade imensa de partículas que alcançam o rosto do outro. Quando a gente espirra, a gente produz um troço chamado aerossol, essas partículas também são capazes de infectar numa distância muito grande. Há também a transmissão por contato, o que significa que se eu estou falando encostado numa mesa, e alguém vai até lá e apoia onde minha saliva tocou, vai ficar com a mão contaminada e, ao tocar em si – coisa que fazemos mais de 20 vezes por hora –, estará contaminado. Por isso, a recomendação do uso de máscaras e de espirrar dentro do braço, na tentativa de reduzir a quantidade de partículas lançadas.
Outro ponto de debate é o isolamento vertical, que consistiria em afastar do convívio as pessoas idosas e grupos de risco [tese defendida pelo presidente]. Há chance de funcionar?
O isolamento vertical não faz o menor sentido. Não se faz isolamento se uma parte puder sair e voltar com o vírus para aqueles que não podem. Como trabalho na área da saúde, consigo ver de forma mais ampla o perigo dessa política. Mesmo que a doença não vá te afetar, te hospitalizar – o que também não temos certeza –, vai acontecer um acidente de carro ou um acidente domiciliar que vai precisar de hospital, e ele estará ocupado. Ou seja, é grande a chance de colapso no sistema de saúde.
Como profissional de saúde, como o senhor vê este momento?
Tenho uma neta que vai fazer 3meses e que eu só vi nos primeiros 30 dias de vida. Eu entendo a angústia de estar na quarentena, de estar em isolamento. Mas temos que ter calma e empatia. Você ficar preso dentro de um hospital sem poder receber ninguém da sua família, sem poder fazer nada, esse sentimento de solidão é muito pior do que ficar na própria casa.
Quando estou no meu canto, eu abro a janela, eu vejo o sol, vejo TV, tenho contato com o mundo externo mesmo que por telefone, vou até a cozinha, faço um prato diferente. Já as pessoas que estão no hospital não têm nada disso. Não pode. Elas não recebem ninguém. Quando a família chega, eles só podem se ver pelo visor da porta. Eu não sei quando isso vai melhorar, mas enquanto não sei, tento levar tudo da maneira mais leve possível. Está difícil para todo mundo.
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