Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida
A citação acima, amplamente divulgada nas redes sociais e atribuída a Simone de Beauvoir (embora sem comprovação) revela uma realidade para as mulheres que estão organizadas no feminismo: em todas as crises, é preciso manter-se vigilante.
Com a crise atual, gerada pela pandemia do novo coronavírus, as feministas estão alertas em relação ao tema do aborto legal na América Latina na agenda dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres.
Apesar de a Organização Mundial da Saúde reconhecer o aborto como um serviço de saúde essencial desde 2012, a chegada do novo coronavírus em território latino-americano pode afetar tanto a vida das mulheres que recorrem ao serviço de abortamento legal – nos países e casos no qual o procedimento é legalizado pelo Estado – quanto daquelas que realizam o procedimento de forma clandestina nos países em que a interrupção voluntária da gravidez é um direito negado.
No contexto do Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher, celebrado no último 28 de maio, o Brasil de Fato conversou com militantes do Brasil, Argentina e Uruguai para compreender o cenário do aborto legal em meio à pandemia.
No Brasil, após o início da quarentena decretada no estado de São Paulo, o Hospital Pérola Byington, referência no atendimento às vítimas de violência sexual no Brasil, interrompeu a realização dos procedimentos de interrupção da gravidez previstos em lei.
Cinco dias depois, após a pressão do movimento feminista, do Ministério Público de São Paulo e da Defensoria Pública, o serviço de abortamento legal foi retomado.
Com diferenças de contexto entre os países, todas as entrevistadas ressaltam a importância de que tanto o aborto legal quanto o acesso aos métodos anticoncepcionais sejam garantidos pelos serviços de saúde neste momento.
Além dos riscos comuns, de negligência médica, e de criminalização, agora as mulheres têm que lidar também com o risco de ser contaminada pelo vírus.
Entre os riscos que as mulheres enfrentam neste momento estão a diminuição dos serviços de aborto legal em meio à pandemia, o que pode levar a uma maior exposição ao vírus devido a deslocamentos mais longos para recorrer ao aborto seguro.
No continente latino-americano, o aborto legal é garantido sem restrições apenas em quatro países, Cuba, Uruguai, Guiana, Guiana Francesa e Porto Rico ou em territórios específicos, como no México, onde é legalizado somente na capital do país, Cidade do México, e no estado de Oaxaca.
“Além dos riscos comuns, de negligência médica, e de criminalização, agora as mulheres têm que lidar também com o risco de serem contaminadas pelo vírus”, afirma Carla Vitória, advogada e pesquisadora em direitos sexuais e reprodutivos.
Ela também assinala que os impedimentos que as mulheres enfrentam neste momento vão muito além das restrições de locomoção. E alerta para o risco de um aumento no número de abortos clandestinos devido à falta de informações públicas sobre como fazer o procedimento em segurança durante o período de isolamento social, bem como a dificuldade de acessar os medicamentos necessários.
Brasil
No caso brasileiro, a militante da Marcha Mundial das Mulheres e integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), Sonia Coelho, comenta que os procedimentos de interrupção voluntária da gravidez também estão paralisados em outro hospital, no Hospital Mário Degni, localizado na região oeste de São Paulo (SP), para atendimento dos pacientes infectados com covid-19.
Ela comenta que a Rede de Enfrentamento à Violência da região enviou um documento ao hospital solicitando a retomada dos procedimentos.
“O serviço de aborto legal é, para nós, um serviço também essencial, não é um serviço que pode ser deixado de lado, não é uma cirurgia eletiva que pode ser feita daqui a seis meses ou um ano. Uma gravidez indesejada precisa ser atendida no momento, a mulher não pode deixar para depois”, afirma.
Coelho considera ainda que a falta de atendimento nos serviços de saúde pode levar mais mulheres a recorrerem a práticas inseguras para realizar a interrupção da gravidez, o que pode colocar em risco a vida dessas mulheres diante de alguma intercorrência médica em um contexto de sobrecarga dos leitos de UTI devido à pandemia.
Uma gravidez indesejada precisa ser atendida no momento, a mulher não pode deixar para depois.
Ela ainda alerta que a suspensão do atendimento nos hospitais pode expor ainda mais as mulheres que buscam o serviço de interrupção voluntária da gravidez ao coronavírus durante os deslocamentos.
“Aqui, por exemplo, na região do Butantã, se esse hospital não oferece o serviço, a mulher tem que ir para o Pérola Byington ou então para o hospital Campo Limpo. Quer dizer, ela precisa sair da região dela, do isolamento social, pegar mais condução, então isso coloca também o risco dela, nessas saídas, se contaminar. Então mais ainda não justifica os serviços estarem fechados”, analisa.
::Saiba mais: Como é o aborto legal no Brasil e por que ele está sob ataque::
Carla Vitória, advogada e pesquisa em direitos sexuais e reprodutivos analisa que esta questão dos deslocamentos se estende também a outros países, como Colômbia e México. Segundo ela, o baixo número de estabelecimentos de saúde aptos faz com que as mulheres tenham que circular longas distâncias para ter acesso ao aborto legal, mesmo no contexto da crise sanitária.
“No México, por exemplo, o aborto só é legalizado em dois territórios. Boa parte das mulheres que abortam, transitam centenas de quilômetros para realizar o aborto. A Colômbia, que aceita realizar o procedimento em estrangeiras, hoje é um dos principais destinos das mulheres que podem viajar para fazer a interrupção. A lei do país inclui a perspectiva da saúde mental, além das causais comuns do território latino-americano, reconhecendo que levar adiante uma gravidez não desejada pode trazer danos graves”, comenta.
A Colômbia é um dos destinos das mulheres brasileiras que buscam realizar o procedimento de interrupção da gravidez em um país onde ele é legalizado. Neste mês, uma reportagem da Revista Azmina recolheu depoimentos de mulheres que tiveram suas viagens canceladas após o fechamento das fronteiras na Colômbia em 16 de março.
Boa parte das mulheres que abortam, transitam centenas de quilômetros para realizar o aborto.
Argentina
No país vizinho, as feministas organizadas na Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito se mobilizam para manter na agenda política do país o projeto de lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE, na sigla em espanhol), mesmo com a suspensão da mobilização que vinham realizando, de forma massiva, desde 2018.
“Estamos num contexto atípico, porque queríamos sair às ruas mas estamos em um isolamento obrigatório por causa da pandemia e isso nos coloca desafios de criatividade. Mas queremos dizer que o aborto também é uma emergência social, como já disseram alguns organismos internacionais e como nós também estamos dizendo há muitos anos, o aborto é uma urgência inclusive durante a pandemia, porque tem a ver com a problemática da saúde pública, de justiça e de direitos humanos”, comenta a jornalista Laura Salomé, integrante da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto.
Sem poder realizar os tradicionais “pañuelazos” pela legalização do aborto no país, as integrantes da campanha promoveram na última quinta-feira (28), um debate online sobre o tema, na data que marca 15 anos de organização.
Em março deste ano, o presidente recém-eleito Alberto Fernández, da Frente para Todos, anunciou que o projeto de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE, na sigla em espanhol), proposto pelo governo, está pronto e será enviado ao Congresso da Nação futuramente porque, segundo o mandatário, o país enfrenta “outras urgências” neste momento.
O aborto é uma urgência inclusive durante a pandemia, porque tem a ver com a problemática da saúde pública, de justiça e de direitos humanos.
Laura Salomé afirma que as integrantes da Campanha Nacional pelo Direito do Aborto Legal esperam conhecer em breve o projeto de lei que será apresentado pelo Poder Executivo.
“Queremos conhecer esse texto e queremos que ele seja o mais próximo possível [do projeto apresentado há 15 anos pela Campanha] em relação aos direitos que garante, porque nós, dentro do nosso projeto de lei, estamos zelando pelos direitos das mulheres e das pessoas com capacidade de gerar. Então exigimos que esses direitos sejam colocados em discussão, respeitados e sancionados e garantidos pelo Estado, com políticas públicas ativas e orçamento para ser levado adiante”, comenta.
Argentina, México, Colômbia e Uruguai emitiram comunicados alinhados com a Organização Mundial da Saúde (OMS), determinando que o serviço de aborto legal constitui uma atividade essencial que não pode ser paralisada por causa da crise atual.
O governo da província de Buenos Aires foi o primeiro a dar orientações sobre o atendimento de abortos legais e o acesso à saúde sexual durante a pandemia na Argentina. No dia 21 de março, o Ministério da Saúde de Buenos Aires divulgou o documento “Recomendação para atendimento integral a pessoas com direito a interromper a gravidez e acesso a métodos contraceptivos no contexto da pandemia de coronavírus“, um protocolo que formaliza as sugestões para as equipes de saúde que atuam na província.
:: “A legalização do aborto é uma dívida da democracia”, afirma ativista argentina ::
As militantes argentinas escutadas pelo Brasil de Fato elogiam as iniciativas do governo federal que, por meio do Ministério da Saúde, tem realizado uma campanha de divulgação e conscientização sobre o acesso à Interrupção Legal da Gravidez durante a pandemia.
No entanto, Ruth Zurbriggen, professora e integrante da organização Socorristas em Rede, afirma que é preciso realizar um esforço mais amplo para não hierarquizar as questões de saúde e não tratar a saúde sexual, reprodutiva e não reprodutiva, como algo que pode ser suspenso em momentos de crise.
“O que temos que evitar é isso, que fique em suspenso, continuar insistindo que o acesso à IVE, a métodos anticoncepcionais, são serviços essenciais que devem estar garantidos. Para isso, temos um desafio enorme”, afirma.
Socorristas em rede – feministas que abortam é uma articulação formada por 54 coletivas feministas da Argentina. Atualmente, a organização conta com 503 militantes que fornecem informações e acompanham a decisão de abortar, como explica Ruth:
“Para isso, temos linhas públicas em todas as coletivas do país, as pessoas ligam para essas linhas públicas, e a partir daí organizamos encontros presenciais para dar informações e compartilhar os acompanhamentos que podemos fazer”.
A quarentena obrigatória decretada em todo o território nacional argentino em 20 de março interrompeu os atendimentos presenciais das socorristas e todo o acompanhamento passou a acontecer através das ligações telefônicas.
Segundo Ruth, durante o isolamento social, as socorristas têm observado um aumento da demanda emocional das mulheres que recorrem às linhas telefônicas, devido à situação de encerramento e às angústias geradas pela crise sanitária.
“Com ou sem quarentena o aborto é um direito. O sistema de saúde não pode te abandonar (…). O socorrismo encurta as distâncias” / Cartaz de divulgação das Socorristas em Rede
Uruguai
O Uruguai é o único país da América do Sul no qual a interrupção da gravidez é realizada até 12 semanas sem restrições.
Em março deste ano, as organizações feministas e profissionais que se dedicam à saúde das mulheres foram surpreendidas com uma declaração do presidente recém-empossado do Uruguai, o megaempresário Lacalle Pou. Em uma coletiva de imprensa, ele afirmou que seu governo está alinhado à agenda pró-vida conservadora, com grande repercussão, despertando inúmeras críticas.
Lilian Abracinskas, diretora da ONG Mulher e Saúde no Uruguay (MYSU), assegura que, pese às declarações do mandatário, o aborto legal no Uruguai está garantido por lei e não pode ser alterado pelo presidente.
No entanto, segundo a militante, a garantia constitucional não impede que o governo tente precarizar ou dificultar o acesso ao aborto legal.
“Não há lei que diz que possam fazê-lo, mas podem e estigmatizar a prática do aborto, então é muito preocupante esta declaração de Lacalle Pou, absolutamente sem nenhum marco normativo que o ampare”, comenta.
Ela ressalta que a compra e distribuição dos métodos anticoncepcionais e insumos para a realização do aborto legal ao serviços de saúde é de responsabilidade do Ministério da Saúde Pública.
“A medicação abortiva só está disponível nas farmácias intra-hospitalares do sistema de saúde e, além disso, tem que ser prescrita por um ginecologista. Portanto, se o ministério não garante a compra desses insumos também ficará complicado o acesso à medicação, o que pode colocar em risco o funcionamento do sistema legal se não há provisão dos insumos requeridos.”
A pesquisadora Carla Vitória também analisa como a ofensiva conservadora no Uruguai pode afetar o direito do aborto legal.
“O presidente Lacaulle Pou tem encampado o que ele chama de ‘uma política de desestímulo do aborto’, prometendo facilitar o sistema de adoções e a situação econômica da mulher que não deseja prosseguir a gravidez”.
Para ela, tanto no Uruguai quanto em outros países da região, os setores conservadores têm aproveitado a crise sanitária gerada pela pandemia para causar confusão e impor sua agenda.
“Estão argumentando de forma cínica a situação de sobrecarga dos sistemas de saúde para impedir o acesso ao aborto legal. Há relatos de petições encabeçadas por setores conservadores em toda a América Latina para coibir a prática. Eles distorcem o argumento do adiamento de cirurgias eletivas para estendê-lo aos casos de aborto”, explica.