Fonte https://br.noticias.yahoo.com/os-que-t%C3%AAm-o-poder-153500235.html
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – "Não sou cristão. Mas, desde há muito, considero que não é possível compreender a vida social se não a partir desse aspecto religioso", diz Michel Maffesoli. O esclarecimento é necessário para quem comece a conhecer a obra do sociólogo francês por "A Palavra do Silêncio" (trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco, Palas Athena, R$ 38, 110 págs.), lançado no Brasil em setembro. No livro, o professor emérito da Sorbonne, onde fundou e dirige o Ceaq (Centro de Estudos sobre a Atualidade e o Cotidiano), defende a ideia de que uma nova espiritualidade, que revalorize o rito sobre a palavra, é necessária. Mas, embora tenha se debruçado sobre a religião ao longo de toda sua carreira, Maffesoli amplia o termo, falando das mais diversas formas de congregação –como as "tribos urbanas", termo cunhado por ele. "Gosto muito de etimologia, religião vem de 'religare', religar. Sempre tentei mostrar que só era possível compreender a estrutura do 'viver juntos' compreendendo seus mitos, suas fantasias, tudo o que é seu imaginário. E a religião ocupa um lugar importante nesse imaginário." Em passagem por São Paulo para lançar "A Palavra do Silêncio", Maffesoli falou à reportagem sobre as diferentes formas de espiritualidade e congregação que vê no cotidiano. * PERGUNTA – O sr. vem dizendo que nosso século verá um aumento da espiritualidade. Ela seria como o sr. defende em "O Silêncio da Palavra", um nexo mais direto, menos racional? MICHEL MAFFESOLI – Minha obsessão tem sido, ao longo dos anos, refletir sobre o fato de que estamos passando de uma época moderna a outra que, na falta de termo melhor, chamamos pós-moderna. O que chamamos de modernidade começa com o cartesianismo; prossegue com a Reforma Protestante e se funda, filosoficamente, no Iluminismo; conforma no século 19, os grandes sistemas sociais; e, no meu ponto de vista, dura até a metade do século 20. Nesses três séculos e meio, o tripé da vida social é a emergência do individualismo, a prevalência do racionalismo e a ideia de progressismo. As novas gerações não creem mais nesse tripé e privilegiam a comunidade, o que em outra época chamei "tribo"; não mais o racional, mas o emocional; não mais o progressismo, mas o presente. Para mim isso é a religiosidade juvenil. Eles não se reconhecem mais no materialismo econômico que se encontra tanto no que resta dos marxismos quanto entre os liberais. Por outro lado há, mais e mais, o apelo do qualitativo da existência, o fazer da vida uma obra de arte, dito à moda de Nietzsche. O fato de que não será mais o trabalho o valor essencial; de que coisas muito simples, os compartilhamentos, as novas formas de solidariedade, elementos de generosidade –elementos que são religiosos. P – Parece uma perspectiva otimista. MM – Não gosto desse adjetivo que me atribuem muitas vezes, porque é um qualificativo moral, e não sou moralista. Sou realista. Meu trabalho consiste em ver. É isso a fenomenologia, para usar um termo um pouco mais chique. Sob essa perspectiva, muito concretamente, vejo que funciona. Não sei no Brasil, mas vejo na França compartilhamento de carro, colocação, coworking, "coetc.". Isso vem do latim "cum", com. Esse é o elemento empírico. É cada vez mais difícil viver nas megalópoles, das quais São Paulo é uma expressão; há uma necessidade de andar juntos contra a adversidade. P – O sr. também vem falando, ao longo desses anos, que a emoção vem ganhando terreno sobre um projeto racionalista. Existe uma ligação entre essa prevalência do emocional e a ascensão dos populismos? MM – A intelligentsia – os jornalistas, os políticos, os acadêmicos – tendem a ver o copo meio vazio. É um problema das elites, desconectadas do povo, pensar que tudo vai mal. Já deu para compreender que eu gosto de ver o copo meio cheio. Tenho um livro, "Elogio da Razão Sensível", em que digo que não é o caso de separar a razão da emoção, que é uma questão de "holos", o todo. Que somos o conjunto. Não pretendo dar à emoção o lugar único, como não quero dar à razão esse lugar. A modernidade repousou sobre a ruptura. Tentei mostrar que deve haver essa sinergia. Para mim, essa perspectiva complexa, de complementaridade, é da ordem da sabedoria popular. E tenho um pouco de medo dessas elites que, agora, vão tachar o povo de populista. Lancei um livro, "La Faillite des Élites" [a falência das elites, em coautoria com Hélène Strohl, recém-publicado na França], no qual tento mostrar que há uma estigmatização da palavra "populista" porque há uma espécie de incompreensão dessa sabedoria popular que faz a ligação entre o espírito e o corpo. Escrevi alguns artigos sobre os "coletes amarelos", fui até eles ver o que estava acontecendo e vi que há uma espécie de sabedoria que não se reconhece mais no aspecto racional dos tecnocratas, dos políticos de direita ou de esquerda. Mas, ao contrário, há um retorno desse que é o fundamento mesmo da democracia, "demos" [povo]. P – O sr. já deu como exemplo desse retorno da emoção as manifestações de jovens no Brasil em 2013. Esses protestos acabaram reunindo aqueles que eram contra a política tradicional. Seguiram-se o impeachment de Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro. Essa resposta emocional é desejável? MM – É difícil falar de Bolsonaro. Não sou brasileiro. P – Ele está bastante presente no noticiário, mesmo na França. MM – Bom, vou ter que falar [ri]. O que me impressiona, no mundo todo, é que haja tal distanciamento entre as elites e o povo que cause a emergência dessas figuras – além de Bolsonaro, Salvini, na Itália, Trump, nos Estados Unidos, Boris Johnson, na Inglaterra. Meu presidente é um homem inteligente. Não, é instruído. Tem essa capacidade de dominar as ferramentas econômicas e diplomáticas, mas nenhum contato com o povo. Esse é para mim o perigo. Como disse num artigo, esses democratas não são demófilos [amigos do povo]. Digo aos meus amigos brasileiros que têm de se questionar; por que vocês têm essa coisa terrível [ri], por que na França temos o que temos? É preciso ter a humildade de aceitar que não é "culpa do povo". P – Em seu livro, o sr. critica o protestantismo, em que a palavra supera o rito e a liturgia. Mais de 30% dos brasileiros são evangélicos. Onde entram essas designações religiosas no quadro do retorno à espiritualidade? MM – O protestantismo foi a marca da modernidade e esse protestantismo é uma forma muito racionalista de disfarçar o ateísmo. Costumo dizer que o Brasil é o laboratório da pós-modernidade, e também nisso o é. Vemos aqui um afluxo dessas denominações, por motivos individuais, como sair de vícios, mas também por um sentido de comunidade nada desprezível. Do meu ponto de vista, porém, é um combate de retaguarda. Acho muito mais interessante, no quadro brasileiro, o papel que têm o candomblé ou a umbanda. Tenho amigos da minha idade no Brasil, marxistas, que se tornaram pais de santo! P – O culto do natural, do ancestral, o retorno ao campo seriam movimentos sociais que denotam uma busca por religação espiritual? MM – Quanto a esse retorno à "mãe terra" e outras manifestações, falo de uma "invaginação do sentido", por oposição à modernidade, em que prevaleceu o falo espermático. O sentido só se compreendia pela projeção fálica. Um dos meus livros, "Matrimonium", tinha como subtítulo "Pequeno Tratado de Ecosofia". Com "ecosofia" –"oikos", casa, "sofia", sabedoria– faço a oposição da ecologia política. É a sabedoria da casa comum. Não se trata do homem mestre e possuidor da natureza de Descartes. É uma religiosidade ambiental que atinge uma enormidade de pessoas. As novas gerações, que vão garantir o futuro da sociedade, têm uma sensibilidade para esse tema. P – Isso nos leva à ativista Greta Thunberg, para alguns uma figura messiânica. Essas figuras são necessárias hoje? MM – Pessoalmente não gosto dela, acho desagradável, agressiva. Mas o que ela representa é interessante. Cada época tem sua figura emblemática, é Durkheim quem diz. A figura emblemática moderna é o adulto sério, racional, produtor e reprodutor. O grande burguês. Uma das minhas hipóteses acerca da pós-modernidade repousa na figura de Dionísio, a criança eterna. É interessante que ela seja uma representação dessa criança. P – O seu livro fala da necessidade do silêncio. Mas cada vez mais as pessoas dizem tudo o que pensam. Quando nos manifestamos nas redes sociais, buscamos uma tribo ou tentamos nos individualizar? MM – Auguste Comte – ele era de Montpellier, como eu, hoje é pouco lido, mas o li bastante– definia a sociedade e a sociologia por uma fórmula em latim, "reductio ad unum", redução a um – a unidade do Estado, da identidade. Quando cunhei o termo "tribo" era uma uma provocação para mostrar como havíamos explodido essa unidade e que, de certa forma, já não prevaleceria o indivíduo, mas a pessoa plural. "Persona" significa "máscara", se sou uma "pessoa plural" tenho máscaras. Nas redes sociais, vivem-se essas máscaras. Então, de certa forma, no nível das redes sociais, que é para mim o nível do tribalismo pós-moderno, o que se dá é a aplicação do que diz Arthur Rimbaud: "Eu é um outro". Não é ou isso ou aquilo, é isso e aquilo. Não deixa de ter uma dimensão religiosa, no sentido de "religare", de estar em relação com o outro. P – No livro, o sr. diz que só existimos pelo olhar do outro. Essa comunhão na alteridade encontra expressão em frases como "Eu sou Charlie" e suas variações. A palavra substitui o ato? MM – Acho que, nesse "eu sou isso, sou aquilo" o que importa não é o "isso" ou o "aquilo", mas o "eu sou". A modernidade tem como uma de suas marcas o encerramento em si mesmo. Todos conhecem o "penso, logo existo" de Descartes, mas poucos sabem o que completa a frase–"na fortaleza da minha mente". A fortaleza da mente foi a grande ideia do indivíduo moderno. Quando digo "eu sou Charlie", "sou isso", "sou aquilo", é essa explosão de si no outro. Para o bem e para o mal. Na guerra santa islâmica também há a explosão de si no outro. Não estamos mais encerrados numa identidade pessoal. É o outro que me cria e, de novo, há nisso uma dimensão religiosa. Estamos passando da era do eu para a do nós. Voltando à sua questão sobre as denominações protestantes, para mim elas são o fim. Elas encerram. Que os políticos, como seu presidente, saibam se valer delas, é outra coisa. P – Esse nós, porém, não é coeso. MM – Poderíamos terminar dizendo que estamos num momento em que há uma diferença entre a sociedade oficial e a sociedade oficiosa. A oficial é representada por pessoas da minha idade, acadêmicos, políticos, jornalistas, a intelligentsia, os que têm poder de dizer e fazer. Ela continua nos velhos caminhos modernos – individualismo, racionalismo, progressismo. Quando olhamos as práticas juvenis da sociedade oficiosa –e, quando digo juvenis não me restrinjo às novas gerações, como disse antes, há esse mito da criança eterna–, essa sociedade está em desacordo com a oficial. Na França, um eleito, do presidente a um deputado, representa 12% da população. Muita gente não se inscreve para votar, 60% da população ficam de fora, a partir daí é que vem a divisão. Essa sociedade oficial é endogâmica. E há algo diferente em gestação, que para mim é o retorno do povo. A primavera do povo. E que vem sendo chamado de populismo –uma maneira de estigmatizar o fato de que esse povo já não se reconhece porque não é mais representado. Retomando Hannah Arendt, ela dizia que, para que haja representação política, primeiro deve haver representação filosófica. Que eu tenha coisas a dizer que lhe agradem, que eu convença você e você me dê sua voz. Agora há essa espécie de secessão entre oficial e oficioso. Já deve ter dado para entender, o que me interessa é o oficioso.