Fonte https://www.huffpostbrasil.com/entry/militares-inss_br_5e222f7dc5b673621f761c54
Chamar 7 mil militares da reserva que receberão uma gratificação de 30% na remuneração e custarão R$ 14,5 milhões aos cofres públicos por mês. Essa foi a solução proposta pelo governo de Jair Bolsonaro para desafogar o atendimento nas agências do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e reduzir o estoque de cerca de 2 milhões de pedidos de benefícios. A promessa é de zerar fila de pedidos até setembro.
A medida foi anunciada pelo secretário especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Rogério Marinho, na última terça-feira (14) e viabilizada legalmente pela reforma da previdência dos militares, aprovada pelo Congresso em 2019.
Um artigo da Lei nº 13.954 prevê que “o militar inativo contratado para o desempenho de atividades de natureza civil em órgãos públicos em caráter voluntário e temporário faz jus a um adicional igual a 3/10 (três décimos) da remuneração que estiver percebendo na inatividade, cabendo o pagamento do adicional ao órgão contratante”.
A proposta vem sendo criticada por servidores do INSS e especialistas em Previdência, para quem a decisão não irá solucionar o caos no sistema.
“A gente pode até colocar os militares, mas não vai resolver o problema. Vai transferir o problema da concessão inicial para o recurso [no INSS]. Vai ter um boom de indeferimentos, porque é mais fácil indeferir do que conceder”, afirmou ao HuffPost Brasil Adriane Bramante, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP). “Para conceder tem de justificar por que a pessoa responde pelo que concede, mas não responde pelo que indefere. A gente vai ter as transferências dos processos para o poder Judiciário.”
De acordo com a especialista, o ideal era o governo federal ter ampliado o quadro do INSS por meio de concurso no passado, diante da perspectiva de que quase metade dos servidores da autarquia iriam se aposentar.
“A gente sabia que a bomba ia estourar a qualquer momento e que, com a reforma [da Previdência], isso ia piorar. O certo seria o governo ter aberto concurso há muitos anos, quando sabia que 55% dos servidores do INSS se aposentariam em 2019, que foi o que aconteceu”, disse Bramante.
A gente sabia que a bomba ia estourar a qualquer momento e que com a reforma [da Previdência] isso ia piorar.Adriane Bramante, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP)
No ano passado, em torno de e 6 mil servidores da autarquia se aposentaram. Atualmente, o órgão conta com cerca de 23 mil trabalhadores, sendo 5 mil para analisar os processos. O déficit na força de trabalho é uma reclamação constante das entidades sindicais da área nos últimos anos.
Desde 2018, ano em que venceu o último concurso da área, entidades sindicais têm cobrado medidas do Executivo para ampliar o quadro de servidores da Previdência e recebido negativas como respostas, diante das políticas de contingenciamento adotadas tanto pelo governo de Michel Temer quanto de Jair Bolsonaro.
Por que não chamar servidores aposentados do INSS?
Questionada pelo HuffPost sobre o motivo para não chamar servidores aposentados do INSS em vez de militares e quanto custaria essa alternativa, a Secretaria da Previdência do ministério comandado por Paulo Guedes não informou o valor e afirmou que “não há previsão legal para chamar servidores aposentados”.
O instituto chamado “reversão”, quando o servidor aposentado volta ao trabalho voluntariamente, contudo, está previsto na Lei 8.112, de 1990, que regula o funcionalismo público. A legislação sobre esse tema foi atualizada em 2000, por meio de uma medida provisória. Na reversão, o trabalhador deixa de receber a aposentadoria e passa a receber o salário previsto no cargo que passou a ocupar.
Para Adriane Bramante, a justificativa do governo não se sustenta. “Eles estão tentando se esvair de todo jeito dessa discussão”, disse. De acordo com ela, servidores aposentados já foram chamados anteriormente. “Isso não é novidade. Há mais de 10 anos a Previdência contratou pessoas aposentadas para ajudar na fila”, disse. “Chamar servidores aposentados seria a melhor solução”, completou.
De acordo com a especialista, para calcular quanto custaria chamar ex-servidores, seria preciso saber quanto o governo irá pagar para cada militar, o que não foi informado. Questionada se nos R$ 14,5 milhões por mês estão incluídos os custos de capacitação, a Secretaria da Previdência respondeu que o treinamento “será realizado na própria agência de lotação, em atividades como: organização de agências, triagem, emissão de senhas e extratos, recepção e digitalização de documentos”.
O que os militares farão no INSS?
Os reservistas das Forças Armadas farão o atendimento ao cidadão nas agências, o que permitirá que cerca de 2 mil funcionários do INSS sejam realocados para a área de análise dos processos. De acordo com Rogério Marinho, os militares serão treinados em fevereiro e em março e devem começar a atender o público em abril.
Para Bramante, o tempo é muito curto para esse tipo de treinamento. “Para nós, que somos da área há 30 anos, já é complexo entender, imagina para militares ou quem quer que seja, entender em dois meses?”, questiona a presidente do IBDP. “O direito previdenciário é muito específico e isso vai prejudicar muita gente″, afirma.
Apesar de a proposta liberar cerca de 2 mil funcionários do INSS para a área de análise, colocar os 7 mil militares na área de atendimento não resolverá, segundo Bramante, o gargalo – que fica, justamente, na etapa de análise de processos.
É que, com a digitalização de serviços do INSS desde 2018, 90% do atendimento passou a ser digital.
O fluxo é de cerca de um milhão de novos pedidos por mês. De acordo com o presidente do INSS, Renato Rodrigues Vieira, o tempo médio atual para concessão do benefício é de 65 dias. A meta é reduzir para 45 dias, prazo máximo legal. Após esse limite, o INSS precisa pagar correção monetária ao beneficiário.
Digitalização do atendimento não aliviou análise dos pedidos
Boa parte dos pedidos não são resolvidos pelo INSS Digital. Em 2019, dos benefícios urbanos, a decisão foi automática em apenas 23% dos requerimentos de salário-maternidade e 20% dos que solicitaram aposentadoria por idade. O número cai para 2% no grupo de aposentadoria por tempo de contribuição.
“A Previdência é muito burocrática. Entro no sistema e está dizendo que tenho 30 anos de contribuição, só que não concede o benefício automaticamente. Precisa de uma pessoa para analisar o processo fisicamente, conferir a documentação. Nem a própria Previdência confia no sistema dela”, afirma Adriane Bramante.
Apesar de reconhecer benefícios da digitalização, a presidente do IBDP também chama atenção para um problema resultante da mudança. Antes, o processo era analisado na agência em que a pessoa pediu. Agora, há uma integração nacional. “Um caso de insalubridade em São Paulo, por exemplo, pode ser analisado por pessoa do Amazonas acostumada a casos de benefícios rurais, de indígenas e quilombolas. Tem muito problema hoje com essa regionalização. É uma fila nacional”, destaca.
O governo atribui à digitalização o atraso na fila, uma vez que o novo sistema teria dado vazão a uma demanda reprimida. Uma corrida por causa da reforma da Previdência e o grande contingente de servidores do INSS que se aposentaram também são outros fatores. A equipe econômica argumenta que, como parte desses fatores são temporários, não valeria a pena para a União o custo de contratar servidores por um novo concurso.
Outro problema recente foi causado pela mudança nas regras de aposentadoria. Apesar de a emenda à Constituição ter sido promulgada em novembro, os sistemas do INSS não foram completamente adaptados às mudanças. Segundo a autarquia, 50% dos procedimentos foram atualizados.
Concurso para o INSS
Para Viviane Pereira, diretora da Fenasps (Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social), a proposta de convocação de militares é “totalmente absurda e sem sentido diante da conjuntura que o INSS vive”.
“Existe um problema estrutural do INSS e uma das principais dificuldades é a falta de recursos humanos, de força de trabalho. Essa situação vem piorando nos últimos anos porque parte considerável da categoria dos servidores do INSS estão se aposentando”, disse ao HuffPost.
O HuffPost questionou o INSS, via assessoria de imprensa, sobre o déficit de funcionários e sobre o sistema digital, mas não obteve resposta até a publicação desse texto.
Ainda no governo de Michel Temer, o então presidente do INSS, Leonardo Gadelha, fez um requerimento ao Ministério do Planejamento solicitando 16.548 vagas para autarquia. O número inclui a convocação de novos concursos e o acréscimo no número de vagas de seleções já realizadas.
O documento enviado ao então secretário de gestão de pessoas da pasta, Augusto Akira Chiba, em 9 de novembro de 2017, cita decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) de 2014 que recomenda que o Executivo elabore um “plano de recomposição gradativa da força de trabalho para que não ocorra a descontinuidade das atividades inerente ao INSS em razão do cenário de aposentadoria em massa, bem como situações de evasões que correm em alta escala no INSS”.
O pedido não foi atendido e em, julho 2018, a Fenasps solicitou aos ministérios do Planejamento e do Desenvolvimento Social, a nomeação dos 450 candidatos excedentes fora das vagas ofertadas no edital do último concurso público da área, realizado em 2016 e que perderia a validade em agosto de 2018.
O Ministério do Planejamento justificou a negativa devido ao orçamento limitado. ”É preciso adequar a necessidade de todos os órgãos e entidades à realidade financeira, especialmente no atual momento de contingenciamento orçamentário”, diz o documento.
A postura no governo de Jair Bolsonaro não foi diferente. A demanda sobre o déficit de servidores foi apresentada ao presidente do INSS, Renato Rodrigues Vieira, pela Fenasp, em reuniões em 13 de fevereiro e em 11 de junho de 2019. De acordo com Viviane Ferreira, “se o governo tiver interesse, em 3 meses é possível fazer o concurso é chamar os aprovados”.
Em julho de 2019, o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria da República no Distrito Federal (PRDF), entrou com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça Federal exigindo que União e INSS contratassem novos funcionários.
“Além da autorização constitucional para a reposição de cargos vagos, há que se ter em mente que a regularidade dos serviços públicos do INSS é fator decisivo para a prestação de condições mínimas de existência à maioria dos seus beneficiários, devendo, por isso, ser política pública priorizada pelo Administrador. Ignorar essa prioridade é compactuar com uma realidade de miséria e fome de milhões de pessoas no país″, diz a petição inicial.
Ignorar essa prioridade é compactuar com uma realidade de miséria e fome de milhões de pessoas no país.Ação do Ministério Público Federal
O documento também cita a recomendação do TCU e aponta falhas na implementação do INSS digital. “As novidades tecnológicas não dispensam a atuação dos servidores para a análise e a decisão sobre o que foi requerido. Na falta da mão de obra humana, a mora na resolução dos requerimentos administrativos se torna insuperável”, diz o texto.
Como reduzir a fila do INSS?
Além de chamar os militares, a Secretaria da Previdência anunciou outras medidas para desafogar a fila. A expectativa é que dois terços dos 1.514 servidores do INSS afastados por licença médica passem por uma perícia médica preferencial e voltem ao trabalho em breve.
A autarquia também restringirá a cessão de funcionários para outros órgãos, que será limitada para cargos comissionados de nível 4 (DAS-4) e para cargos vinculados diretamente à Presidência da República. Cerca de 200 funcionários do INSS estão cedidos.
Outra medida anunciada é a ampliação de convênios com o setor privado para empresas formalizarem os pedidos de aposentadoria, o que acelera o processo.
O decreto com as alterações deve incluir ainda uma simplificação na tramitação dos pedidos de benefícios. O INSS também deixará de exigir, por exemplo, a demonstração do vínculo quando o empregado e o empregador contribuem atualmente para a Previdência Social.