Fonte https://www.huffpostbrasil.com/entry/socrates-filme_br_5d8bda74e4b0e9e76046bf4d
Sócrates, que estreou no circuito nesta semana, poderia ser mais um número na triste estatística dos filmes brasileiros muito elogiados em festivais pelo mundo que por aqui são exibidos em meia dúzia de salas “de arte” e que o grande público nem sequer sabe da existência. Não fosse por um “detalhe”: o fator Christian Malheiros.
Jovem ator da periferia de Santos (SP), Malheiros explodiu com Sintonia, série criada por Kondzilla — o mago por trás do sucesso do funk ostentação — que desde sua estreia, em agosto, se transformou em um dos maiores hits da Netflix no Brasil.
Da noite para o dia, Malheiros viu sua popularidade explodir. Sua página no Instagram, por exemplo, já acumula quase 1 milhão de seguidores. E foi por lá que ele mostrou um pequeno trailer do filme para um público que normalmente não vai ao cinema assistir a filmes nacionais. Resultado: quase 98 mil visualizações, gerando um buzz que uma produção que custou apenas US$ 20 mil jamais teria por canais tradicionais.
Sócrates nasceu da dor e solidão que seu diretor, o americano de origem brasileira Alexandre Moratto, sentiu após a morte de sua mãe, em 2014. Filho de pai americano e mãe brasileira, Alex, como é mais conhecido, nasceu e foi criado nos Estados Unidos, mas vinha ao Brasil em suas férias de verão. Principalmente para a Baixada Santista, onde está boa parte da família de sua mãe. Foi em uma dessas estadias que ele conheceu e se apaixonou pelo Instituto Querô, que capacita jovens de 16 a 20 anos para o audiovisual.
“Minha mãe faleceu e eu decidi passar um tempo aqui no Brasil, com a família dela. Como ela morava nos Estados Unidos, mas a família dela estava toda aqui, foi um período muito solitário para mim. Foi extremamente difícil lidar com a morte dela sozinho. Eu estava precisando expressar essa solidão, colocar isso para fora”, explica Moratto, em entrevista ao HuffPost Brasil.
“Mas não queria fazer um filme sobre mim, então falei com meus amigos no Instituto [Querô] e tivemos a ideia de pegar uma história muito pessoal para mim e colocar em um contexto social, que para mim é muito importante representar desde que trabalhei como voluntário no Instituto, anos atrás. Sócrates é feito com os próprios alunos tocando o set, participando da produção. Foi uma oficina em ação em um set de longa metragem.”
Em Sócrates, eu queria colocar o público dentro da perspectiva do protagonista. Queria colocar a gente dentro da cabeça dele. Dentro daquela ansiedade, da tensão dele.Alexandre Moratto, cineasta
Sócrates é um drama bem poderoso que conta a história de um garoto de 15 anos que vive com sua mãe no México 70, uma favela de palafitas em São Vicente, cidade da Baixada Santista. Quando sua mãe morre, Sócrates se vê sozinho no mundo, tendo que se virar para comer e pagar o aluguel, que está atrasado. Em um dos bicos que arranja, ele conhece Maicon (Tales Ordakji), um garoto um pouco mais velho por quem se apaixona.
“Sócrates, Nando [personagem de Sintonia] e eu temos muitas semelhanças. Somo três jovens negros da periferia. Mas seguimos caminhos distintos. O público de Sintonia é um público que a própria Netflix não tinha. Porque Sintonia retrata uma favela de São Paulo, uma coisa que o Brasil ainda não tinha visto. Pela resposta que eu recebo via redes sociais, quando postei o trailer do filme, por exemplo, tenho certeza que esse público vai abraçar Sócrates. É um outro lugar meu como artista, mas que também passa uma mensagem muito importante”, conta Christian Malheiros ao HuffPost.
O que pouca gente sabia é que a estrela de Malheiros começou a brilhar já no começo de 2019. Em fevereiro ele concorreu a um dos maiores prêmios do cinema independente no mundo: o Spirit Awards. Com o protagonista de Sócrates, Malheiros disputou a estatueta de melhor ator com nomes como Joaquin Phoenix e Ethan Hawke, quem aliás, acabou levando o prêmio por First Reformed.
“Eu nem sabia o que era Spirit. Estava no mercado com a minha mãe, na época da gravação do Sintonia, quando alguém me mandou o link de uma matéria com um título mais ou menos assim: ‘Ator brasileiro é indicado ao Oscar do cinema independente’. Achei super legal e cliquei no link e foi aí que eu vi a minha foto!”, recorda-se.
“Chegando lá, foi uma experiência surreal. O tratamento, a forma como eu fui recepcionado, a reação das pessoas sobre o nosso filme… Foi legal demais. No tapete vermelho a Glenn Close passou do meu lado! Estava curtindo o momento. Quando saiu o resultado, aquilo era o que menos importava para mim”, completa.
Temos no nosso País uma cultura que o Nando matando um cara é mais normal que dois homens se beijando.Christian Malheiros, ator
A comparação com Moonlight e o beijo
Muito elogiado em resenhas de jornais estrangeiros, Sócrates é muito comparado a Moonlight: Sob a Luz do Luar, filme que ganhou o Oscar de Melhor Filme em 2017. Muito por conta, claro, por seu protagonista ser um jovem negro, pobre e gay. Mas Moratto não concorda. O que é muito compreensível, porque seu filme tem uma estética muito mais parecida com as obras naturalistas dos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne (Rosetta, Dois Dias, Uma Noite).
“Moonlight não tem muito a ver esteticamente com Sócrates. Já tínhamos até terminado de filmar quando o primeiro trailer de Moonlight foi lançado. Lembro que quando fechamos a gravação, alguém me mandou o trailer dizendo algo como: ‘olha que interessante, tem algo a ver com o seu filme’. Quando eu vi, até concordei, mas quando assisti ao filme, vi que não tem nada a ver. É totalmente diferente”, relembra o diretor, que completa: “Em Sócrates eu queria colocar o público dentro da perspectiva do protagonista. Por isso que a câmera está sempre no rosto dele, seguindo ele muito de perto. Porque eu queria colocar a gente dentro da cabeça dele. Dentro daquela ansiedade, da tensão dele. Um dia desses ouvi alguém dizendo que parece menos um drama realista e mais um filme de ação. Eu gosto disso! Porque é exatamente essa intensidade que eu estava procurando.”
Essa intensidade, aliás, é muito bem representada em uma cena de beijo que pode chocar o público mais familiarizado com o Nando de Sintonia. ”É muito louco isso. Temos no nosso País uma cultura que o Nando matando um cara é mais normal que dois homens se beijando. Isso é uma coisa que a gente tem que mudar”, opina Malheiros.
“Pô, beijo é beijo. O beijo é uma coisa que fazemos por prazer. Agora, vai fazer a cena que o cara come lixo? Eu já passei fome. É uma coisa muito difícil. Não é legal fazer uma cena dessas ou fazer as cenas em que fecham a porta na cara do Sócrates, um cara que não tem mais ninguém na vida dele. Temos que mudar esse foco. O foco não está aí, está em problemas sérios que a gente sofre desde que o mundo é mundo.”
“Mas as pessoas estão abertas a essas mensagens. A gente, de uma certa forma, está conseguindo migrar esse público para uma outra visão de um menino da periferia. De um menino que não foi para o tráfico, que não se rendeu às drogas, que não seguiu para o submundo, mas que também sofre com as mesmas problemáticas. É um outro lugar de identificação que as pessoas também têm curiosidade em conhecer. Essa recepção ao Sócrates está sendo muito positiva até agora e isso me deixa muito feliz”, conclui o ator.